UM AGENTE DIFERENTE - [Desafio Literário II]
Semicerrei os olhos, tentando enxergar mais longe. Consegui contar oito homens fortemente armados vigiando a entrada principal. Mantive-me agachado entre as folhas que dançavam a silenciosa sinfonia do vento. As luzes passavam bem próximas a mim, procurando alguém na escuridão da noite, mas nunca me encontravam. Os movimentos, que pareciam aleatórios, tinham na verdade uma lógica. Arriscavam às vezes vir na minha direção, mas mudavam seu trajeto momentos antes. Se eu fosse um agente novato assustaria-mse, tentando fugir das luzes, e não demoraria a ser descoberto. Mas eu era um velho lobo nessa profissão.
Observei um caminhão se aproximando da construção ao longe. Parou na porta principal. Uma rápida conversa, alguns documentos e uma confirmação pelo walk talk. As portas de trás do caminhão foram abertas e um dos vigilantes fez uma rápida revista. Um sinal e as enormes portas da entrada se abriram. Esqueceram-se, porém, de verificar embaixo do caminhão. Um erro de principiantes. Abri um sorriso.
Algumas horas mais tarde, atento às minas terrestres (eficientes, mas ultrapassadas), alcancei a estrada de terra que terminava na construção. Um caminhão vermelho surgiu atrás do monte. JTC-1186. Lembrava-me bem daquela placa. Observara aquela área há mais de uma semana. Nunca tive paciência para pescar, mas jamais me afobei em serviço. O bigodudo motorista parava sempre no mesmo lugar, o ponto mais alto da estrada, que lembrava uma pequena colina, para tirar água dos joelhos. Talvez aquela vista lhe lembrasse alguma paisagem de sua infância, que ele sempre insistia em parar para apreciar. Ou talvez aquele idoso homem só tivesse incontinência urinária, nunca descobri.
Esperei o caminhão se aproximar e cruzei os dedos (jamais abandonei minhas pequenas crenças!). Passou devagar por mim. Comemorei quando as luzes de freio se acenderam. Minhas análises estatísticas eram infalíveis. Adiantei-me à parte de trás do caminhão e, enquanto o homem se espreguiçava em sua descida do caminhão, eu me agarrei firme ao esqueleto metálico da parte de baixo do caminhão. Depois de um comentário solitário sobre um passarinho sem educação que atingira a lateral do veículo com suas necessidades, o repugnante velhote mirou o jato amarelo diretamente na lataria, a fim de limpar a sujeira. Os pingos vinham diretamente em minha direção, que me esforçava para fugir deles, dobrando o corpo, enquanto murmurava, mudo, xingamentos em todas as línguas que eu conhecia! Após a desconfortável situação, o homem de bigode voltou para dentro do caminhão e ligou o motor. O caminhão só parou novamente no portão da frente do seguro complexo.
Enquanto um dos homens verificava a parte de trás do caminhão, percebi algo caindo no chão, bem ao meu lado. O homem se abaixou para pegar o cigarro. Prendi a respiração! Recolheu seu cilindro nicotinado com a mão esquerda. Na outra mão pude ver uma Glock prateada. Ficou um tempo mais que o necessário agachado. Talvez tivesse pressentido alguma coisa. Minhas mãos calejadas pela experiência ainda se encaixavam firme nas engrenagens. Levantou-se. E eu dei um suspiro aliviado.
Ouvi o som da pesada porta de metal se abrindo. O caminhão avançou, atravessando um enorme pátio. Pude perceber um grande “H” sendo deixado para trás, bem nas minhas costas. Provavelmente o heliporto do complexo. Chegamos a uma descida. A escuridão da noite ficou para trás e o ambiente foi iluminado por uma fraca luz alaranjada. Paramos ao lado de muitos outros caminhões.
Só sai de minha posição por volta de meia hora depois, quando não se podia ouvir mais nenhum ruído sequer no ambiente. Parecia-me que o caminhão só iria ser descarregado no outro dia. Ainda dei uma criminosa olhada para trás, antes de continuar minha aventura, desejando ter vontade de urinar para poder encharcar o banco daquele maldito coroa.
Segui na ponta dos pés até uma escada que levava aos andares superiores. Quando cheguei ao topo da escada, olhei com cuidado para os dois lados. Um homem, com uniforme camuflado e olhares atentos, guardava a esquina do corredor, tendo assim vista para os dois lados. Só existia um modo de atravessar aquele corredor sem ser percebido. Um mergulho certeiro e muita sorte de que ele estivesse olhando para o outro corredor. Tomei uma pequena distância, respirei fundo e esperei. Quando ouvi minha intuição dizer: “Vai com Deus, meu filho”, fechei os olhos e dei o impulso. A cambalhota foi certeira, mas a queda um pouco desastrada e barulhenta. Cursos de reciclagem para agentes especiais não são muito comuns.
Ouvi o soldado se aproximar em um apressado trote. À minha frente apenas um corredor sem fim e duas portas, uma de frente para outra. Usei a velha técnica da porta falsa. Fiquei no meio do corredor, de frente para a porta da enorme sala com janelas, de costas para uma pequena sala cheia de caixas. Meus treinados ouvidos ficaram atentos ao barulho das botas. Conseguia calcular com enorme precisão a que distância um som estava de mim apenas pelos sons. Quando faltava pouco mais de um metro para o homem fazer a curva, peguei a maçaneta da porta à minha frente e puxei com força. Quase que imediatamente dei um salto para trás, saindo da visão do agente que acabara de virar o corredor. Escondi-me atrás da porta da pequena sala, sem fechá-la. Quando chegou perto, o inocente soldado não teve dúvidas que alguém tinha entrado pela porta que fizera barulho, já que ela ainda se mantinha em movimento, e a outra sala, um pequeno cubículo cheio de caixas com a porta aberta e imóvel, estava claramente vazia. Em questão de segundos, enquanto ele acionava seu aparelho, mandando um alerta, e entrava afobado na outra sala, indo verificar a janela, me esgueirei para fora, voltando em direção ao corredor principal. Quando o homem voltou para verificar a outra sala, eu já estava bem longe.
Avancei para o segundo andar, quando ouvi duas vozes zombando o recado do walk talk.
- Porta fechando sozinha? Tem algum novato por aqui que vai acabar fazendo xixi nas calças por causa de fantasmas! - concluiu rindo em uníssono com o companheiro. O outro homem, de traços orientais, parecia rir forçadamente. Talvez realmente tivesse medo de fantasmas.
Os dois guardavam uma porta de ferro. Logo atrás dela, meu objetivo. O sistema de abertura parecia simples, sem senha. Necessitava apenas de um cartão. Era o mesmo sistema usado em hotéis cinco estrela. Só precisava me livrar dos dois homens que faziam a segurança da porta.
- Falando em xixi nas calças, me dê uma licença que eu preciso ir ao banheiro. – disse o homem que não parecia muito animado com a história sobrenatural.
Era a situação perfeita! Cheguei ao banheiro, antes mesmo do homem de olhos puxados terminar sua frase. Observei rapidamente o ambiente. Duas cabines vazadas embaixo com privadas e duas pias. Agi com rapidez e me camuflei novamente nas escadas que levavam ao andar inferior. Vi o homem entrar no banheiro. Quando ouvi o barulho da porta da cabine sendo batida, esperei alguns poucos segundos e avancei sem alarde banheiro adentro. Pude ver a calça dele no chão, através da parte de baixo da cabine. Tinha acabado de se sentar. Podia agora me aproveitar de seu possível temor. Apaguei a luz. Ouvi o homem falando baixinho, como se estivesse com medo de ouvir uma voz fantasmagórica:
- Max, é você? Max? ... maldito mal contato! Mas qual o problema, afinal? Não preciso de luz para fazer minhas necessidades... - murmurou, como se sua falsa conclusão fosse o suficiente para lhe convencer de que aquilo não tinha nada a ver com espíritos.
Enquanto o homem tentava se acalmar confuso, eu já tinha lhe arrancado furtivamente, através da parte de baixo da cabine, o cartão da porta que ele guardava em seu bolso direito. Peguei também seu walk talk de cima da pia. Desliguei o aparelho, deixando-o atrás do belo vaso branco e ornamentado no início do corredor. Fácil como roubar um doce de uma criança. Só faltava fazer o outro guarda abandonar seu posto. Mas eu não precisaria fazer nenhum esforço; isso já fazia parte do plano desde o começo. Momentos depois, uma voz cortou o corredor:
- Max! .... Maax! .... Maaaax! –
Provavelmente a essa hora o pobre guarda medroso já tinha percebido que estava sem papel, que tinham sido retirados em minha primeira visita ao banheiro e acabara de ganhar a companhia de um walk talk atrás do vaso branco.
- Mas que merda! O que será que esse cara quer agora? Será que ele não sabe usar o “walk”?- resmungou enquanto seguia em direção ao banheiro.
Andei calmamente em direção à porta e inseri o cartão no pequeno aparelho colorido. Vi uma luz verde e um apito de confirmação. Avancei com um grande sorriso de satisfação no rosto. Tinha chegado ao meu destino com sucesso. Orgulhava-me. Era um agente e tanto, e não tinha modéstia nenhuma em afirmar isso!
Fechei a porta e me virei. O cheiro de charuto preenchia a sala. A alguns poucos passos de mim eu pude ver a rechonchuda mão coçando uma cabeça calva com ar de preocupação. Sentado de costas para a porta, revirando dezenas de papéis de suas inúmeras falcatruas, estava Farzzoni, empresário descendente de magnatas italianos, que, depois de ir à falência por seu consumo sem medidas em carros espetaculosos, jogatinas e festas recheadas de drogas, usou sua influência para ganhar dinheiro sujo das mais variadas formas.
Atolado até o pescoço de incontáveis processos, Farzzoni continuava fazendo vítimas. Depois conseguir escapar ileso de uma acusação como um dos sócios de uma imensa rede de prostituição, partiu para o ramo das empresas fantasmas. Começou então a comprar empresas que beiravam a falência e já possuíam inúmeros clientes para angariar cada vez mais pessoas inocentes, que nem sabiam o que estava acontecendo, e assim manter suas “riquezas” e sustentar suas ninharias. Nunca tinha ouvido falar nesse italiano de bigodes longos, até o dia em que minha família acabou sendo vítima do falsário. Pois bem, era hora de agir!
Cheguei bem perto de sua orelha esquerda e assoprei com força. Farzzoni virou-se, arregalando os olhos com cara de medo. Os peitos se encheram com o ar que lhe encheu os pulmões na hora do susto. Nem me notou. Fui até o rádio, aumentei o volume ao máximo e apertei “On”. Um blues ecoou em toda a sala, enquanto o italiano dava outro pulo de susto na cadeira. Dei a volta enquanto ele ainda procurava, com os olhos, alguém na sala. Com um sorriso bem desenhado no rosto, peguei os papéis em cima da mesa e joguei para cima. Ele deu um berro alto e caiu sentado no chão. Dei uma longa e sinistra risada.
- Quem está aí? Quem é você???
Peguei um pincel em cima da mesa e molhei no tinteiro. Enquanto eu caminhava pela sala com o pincel na mão, Farzzoni via o mesmo voando livre pelo ar. Não podia me ver, nem que quisesse. Cheguei perto da parede e comecei a escrever:
“Chega de enganar as pessoas! Chega de empresas fantasmas! Senão o próximo fantasma aqui será você!”
É claro que aquilo era apenas uma ameaça vazia. Mas ele nunca saberia. Eu me divertia como nunca. Adorava sentir-me vivo. Quem se sentia morto àquela hora era o rechonchudo empresário, que chorava e implorava por sua vida de mãos dadas, prometendo nunca mais fazer mal a ninguém. Lembrei-me dos momentos que passei, não mais em vida, ao lado de minha família, que viveu inúmeras dificuldades financeiras depois de minha morte. Não em serviço, é claro. Causas naturais.
A empresa de seguros de vida da qual eu era cliente foi uma das compradas pelo calvo italiano. Ver minha amada mulher e meus filhos tendo que passar por tudo que passaram, até conseguirem se estabilizar, me deixou com um sentimento vingativo. Não maldoso. Uma vingança sutil, que pudesse livrar outras famílias de pessoas como Farzzoni. Era ele um Empresário Fantasma? Pois bem! Transformei-me em um Agente Fantasma!
Ora, eu não poderia ter simplesmente atravessado as paredes de seu QG, voado até sua sala e feito todo meu serviço? Claro! Sou um fantasma. Essa ação, porém, não me daria boa sensação nenhuma. Seria simplesmente satisfatório. Se por algum acaso eu não conseguisse me esconder no meio do caminho, também não seria problema algum. Afinal, eu sou invisível! Uma aventura dessas, porém, me dava um prazer imensurável. A sensação agradável de colocar a nostalgia em ação. Como o Paintball. Primeiro a pessoa finge que tudo é de verdade. Se for boa o suficiente, nunca será atingida. Mas se for atingida também, não tem problemas, é só tinta! Viver (morto!) pode ser muito monótono. Dar sustos durante a vida inteira sempre me pareceu uma idéia um tanto quanto cansativa. Que graça tem a vida de um fantasma se ele não tentar se sentir vivo?
O caminho até Farzonni não foi fácil, e até conseguir descobrir tudo sobre ele passei por muitos outros empresários fantasmas. O mesmo recado foi dado a todos! A maioria dos empresários pensava que esses outros tinham apenas enlouquecido, ou estavam encurralados pela polícia e resolviam largar tudo. Tolo engano!
Ao começar a bolar meu plano para o estelionatário, confesso ter ficado um pouco nervoso. Imaginava que essa era minha última missão na terra e que, quando terminasse com ele, um túnel de luz se abriria no céu e anjos iriam tocar harpas para minha subida aos céus. Porém, nada aconteceu.
Enquanto os dois atrapalhados seguranças entravam correndo na sala pra socorrer Farzzoni, que suava e gritava sem parar, eu abandonava o recinto pensando que, talvez, alguém lá em cima ainda tivesse outros planos para o Agente Fantasma. Sem problemas! Eu ainda também tinha muitos planos para alguns fantasmas por aí...
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Desafio Literário II
Tema: Anjos/Fantasmas
Réplicas dos escritores e amigos:
Álvaro Luís:
http://www.recantodasletras.com.br/contosinsolitos/1483831
Suzana Barbi:
http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/1487444