ANO-BOM

Há muito me acendi ao espanto das festas e crendices para liquidar o ano velho. Excluo o que não pertence ao meu comovido panfleto e aquelas verdades e mentiras que na manhã me faziam calar. E as manhãs foram passando a cada ruga escondida no pó do ano, no meu adeus de passagem. A aurora de todo dia neste peito fatigado há de zerar o débito para o calendário novo, como o momento de virar a página. O momento de virar a vida no talismã da última hora.

Mas antes de os obstáculos se concentrarem no vão ornato do relógio da torre, qual pó indicando estrada, também expirarei no gole do champanha e amanhecerei na espuma suspensa ante o ano novo. No que a missa me faz menino, um mito de mim distribuído nos sapatos da espera da última palavra, já sem sacerdócio, a contagem regressiva.

O último banquete sob a luz ainda tépida, irresoluta aos mais velhos. A última noite mais longa aos meus olhos se extinguindo, porém, irredutíveis. A cabeça antiga sob o novo sol em ruas nas quais me perco. Fogos que metem medo até se refugiarem ao tempo de vadiarem se esvaindo. Nenhum livro para ler, nenhum jornal, nenhum patrão. A noite enlouqueceu e não avisaram que há um ponto em que tudo se explica. Não avisaram e os ouvidos se multiplicam para que a noite encontre seu termo. A noite sem sinos. Apenas o corvo que sei tanto até me esquecer de mim.

Salve, precário lenço! Sem tua matéria o mundo se recompõe. Mas não há desespero e a vida se apresenta. Ano novo antecipado no blackout do meu beijo. Vida nova, procuro-te no canto individual do galo sem cor. Encontrar-te vale o tempo que demoro. Vale a vida que derrete o enigma da rosa que não vingará no milhão de palavras doces ou duras. Salve! salve! salve! Perdoo-te e o galo ainda não cantou.

Quando em menino, aprendi a soletrar R –É– V – E – I – L – L – O – N e a celebração era a descoberta em si. Mas as letras foram se superpondo e passaram a existir na luva para tocar a borra do tempo. Só agora, adulto, gosto de colorir-me nas cores de uma aurora do último dia do tempo.

Hora de cultuar-me um dia por um ano. As datas se cultuam? O coração se esvazia para caber no dia que é só espera. A espera não tem tempo para dividendos e subtração. Na noite há um lobo espreitando meus despojos deixados a cada cintilar de olhos noturnos. Hora há de rever-me noutro até onde a medida alcançar sem exagero do que de mim já não inventa. É a virada e o casulo de quem soube ou não tirá-lo sem um pouco de farrapos de novos couros idos. Tempo que antecede a sobriedade, momento certo para o incerto momento.

Uma vez me disseram que o 1º de janeiro é apenas o que sucede o último dia de dezembro. Só hoje percebo a garantia de trago amargo de ano por mês. Talvez por outros terem visto mais réveillon do que eu, acostumaram-se com a vida sem calendário. Mas digo “Só hoje” e quase não dou conta da iminente passagem do ano consumada. Por isso imprimo em mim, em tempo, o sorriso festivo do futuro ano velho nas rodas do passado ano novo.

G Monteiro
Enviado por G Monteiro em 05/01/2009
Reeditado em 10/01/2011
Código do texto: T1368646