URETROSCOPIA
Esse cara esta me enganando, pensei. Assim mesmo meti o papel no bolso e saí sem dizer nada. Leria lá fora e se houvesse alguma coisa a mais que raios-X, jogaria aquela receita no lixo. Claro que estou urinando a cada cinco minutos e sinto uma dor horrível na bexiga. Mas também sinto um medo infantil de tudo o que cheira a médico.
Não entendi a letra e só consegui ler uma parte da primeira palavra: uretro...
Desconfiado, continuei a caminhar com o papel na mão e, como houvesse um laboratório no caminho, entrei para pedir explicações. Entreguei a receita à moça do guichê, que a leu sem o menor embaraço, escreveu meu nome num fichário, deu-me quatro comprimidos para tomar doze horas antes dos exames, um lembrete com algumas instruções e horário marcado para dali a três dias às sete horas. Só.
Entrei e saí sem abrir a boca, mas com uma certeza: era mais que raios-X.
Em casa me convenceram. Dia e hora marcados, lá estava eu, no laboratório. Jejum completo; intestinos alvoroçados, por causa dos comprimidos, e apreensivo, meio assustado.
A sala de espera estava repleta. Mais mulheres. Umas caladas, outras sussurrando. Nesses locais, em situações semelhantes, é sempre a mesma coisa: as pessoas nunca ficam à vontade, falam baixinho.
Em alguns minutos, um alto-falante começou a chamar os nomes. Cruzei as pernas, descruzei-as, peguei outra revista. Pensei em ir-me embora. Levantei-me, fui até à porta, olhei para a rua, voltei e sentei-me. Esperei.
A bexiga, cheíssima, me constrangia a procurar um banheiro e, para piorar, o laxante que a moça me dera, para tomar doze horas antes, teimava em mostrar sua força. Mas eu não poderia sair dali. A bexiga teria que continuar cheia. Era pré-requisito para o exame.
Meia hora mais tarde entrei pela porta de onde ouvira meu nome.
- Na cabine número um. Troque sua roupa por esta camisola.
O atendente me pareceu um tanto cínico. Um tipo gozador. Não gostei nada do sujeito.
-Toda a roupa? Perguntei com cara desses alunos que perguntam na hora da prova: “Numa folha, professor? Com caneta ou com lápis?”
- Toda, respondeu taxativamente.
- Até a cueca?
- Tudo!
Não sou muito falador, todavia, naquela hora, torci para que o diálogo continuasse, por isso prossegui fazendo perguntas infantis:
- Por favor, poderia me dizer que tipo de exame é esse?
- Não se preocupe. Lacônico e cínico.
Não perguntei mais nada, para não parecer ridículo. Entrei no vestiário, troquei a roupa e fiquei na expectativa.
- Deite-se de costas naquela cama, mandou.
Deitei-me. Ele levantou-me a camisola e por um instante se deteve olhando.
Não gostei. Um calorão me queimou o rosto...pensei que o sujeito fosse gay.
- Vamos bater umas chapas, disse por fim.
Sob pretexto de me colocar na posição correta, segurou-me com as duas mãos pelos quadris e empurrou-me de leve para um lado e para outro, até se dar por satisfeito. Em seguida se dirigiu para o painel de controle e tornou a ordenar:
- Só respire quando eu mandar. Pronto, pode respirar. Agora vire-se de lado para a esquerda e não respire. Para a direita e não respire. Pronto!
Bateu seis chapas nas mais variadas posições e desapareceu. Quando voltou, trazia uma bandeja cheia de instrumentos.
- Vamos ter que colocar a sonda. Não se preocupe que tudo vai sair bem.
Olhei para a sonda, que me pareceu mais uma mangueira, e senti a dor antecipar-se. Suei frio.
Sem mais conversa, começou a me passar a mão: no joelho, foi subindo...no ventre...foi passando...Fechei os olhos e apertei os lábios com raiva, mas não disse nada. De repente senti o pênis preso. Algo gelado e úmido foi sendo pincelado na glande. Não abri os olhos. Então senti a sonda sendo introduzida pela uretra. Ele disse que não me preocupasse, que nada sentiria, além de uma “tesãozinha” esquisita, até que...
- Pronto, você já está urinando pela sonda.
Levantei a cabeça para olhar: o pênis retraído, cabeça vermelha de mercúrio, urinava insensivelmente.
Vazia a bexiga, o rapaz voltou à carga:
- Agora vou pôr o soro destes dois tubos dentro da sua bexiga, depois você terá que uriná-lo, ao meu comando, enquanto bato as chapas.
O conteúdo dos tubos demorou vinte minutos para me encher a bexiga, a ponto de quase estourá-la. A dor era horrível e crescente.
Do painel, ele voltou a informar:
- Você vai urinar quando eu mandar, porque as chapas terão que ser tiradas enquanto a urina estiver correndo. Vai urinar um pouco e parar, urinar um pouco e parar, até que todas as chapas estejam prontas.
Minha bexiga não tinha capacidade de reflexo, isto é, não tinha controle, por isso urinava a cada instante. Agora estava com quase dois litros de soro dentro e obrigado a comandar saída e parada por ordem do atendente. Tarefa complicada e dolorida.
- Urine, mandou.
- Na cama mesmo?
- É! “Mije” de uma vez e não se preocupe com a cama.
Fiz força. A urina mal começou a sair e ele mandou parar. Fiz mais força do que me imaginava capaz e nem havia parado, mandou urinar outra vez. A voz de pare, urine, pare, urine, me torturava. Já nem sabia mais se fazia correto. Perdera a noção. A dor era grande.
Terminado o trabalho das chapas, me deixou sozinho, todo molhado e a bexiga não parava de doer. Porém, em seguida, ele voltou com um lençol seco, uma camisola, uma toalha e foi puxando as roupas molhadas sobre as quais eu estava. Pedi-lhe para descer e ele respondeu que não; que esse era seu trabalho.
Apurei os sentidos e voltei a me preocupar seriamente, quando percebi que sua intenção era enxugar-me nas partes molhadas. Comecei a dizer qualquer coisa que nem me ocorrera antes:
- Olha aqui, como é seu nome?
- Romão.
- Pois é, Romão, tenho trinta e cinco anos, sou casado e...
- Fique frio!
- Só queria dizer que sou casado, pai de três filhos, prof...
- Está bem, pode vestir a roupa.
O mesmo risinho de Monalisa que me recebera, continuava ao liberar-me.
Saí flutuando.
À rua tudo continuava normal. Constatei, com alegria incontida, que nada mudara. O céu jamais estivera tão azul. O sol quente de verão irradiava alegria e vida. O vento, embora me batesse forte no rosto, era como a mais doce das carícias. Sorri feliz e tive que refrear o impulso para não correr.
Floripa, 1984.