UMA JANELA SOBRE O MAR

UMA JANELA SOBRE O MAR

Descemos do ônibus às oito horas e fomos caminhando pela areia. As crianças corriam e às vezes corríamos atrás. Chegamos cansados, mas felizes. Escolhemos o local e nos acomodamos.

A praia, suja e deserta, estava reduzida a uma estreita faixa. As ondas vinham enormes e, na passagem para o penhasco, no qual batiam com uma violência escandalosa, cobriam as pedras menores.

Às crianças não importava a situação. Elas só queriam areia. Às vezes experimentavam a temperatura da água e voltavam correndo.

O contato áspero com a areia e os raios do sol chocando-se contra nossos corpos seminus, devagarzinho nos transmitiam uma sensação de paz e liberdade. Fechei os olhos e permiti que os ruídos do mar me levassem para longe, numa agradável sonolência, da qual fui arrancado por um pressentimento estranho, pesado de angústia: ela não estava mais ao meu lado. Sobressaltado, procurei-a ansioso, com o olhar circundando o local e não a encontrei. A voz embargou-me na garganta e não consegui chamá-la. Olhei apreensivo para o mar, já mais calmo, mas ainda com ondas altas e só vi a imensidão. A vinte metros a pedra que há pouco não se via. Só. Então me acusei por ter-lhe dito algo que pareceu magoá-la.

Sem atinar por que, com o coração em disparada, as pernas frouxas e o sangue faltando-me nas veias, corri para o mar, em direção à pedra. Tropecei na primeira onda, caí e tomei água. Olhei para a frente... A pedra estava longe. Nadei como um louco e a vi atrás da pedra, debatendo-se às cegas. Não gritava, porém suas mãos, procurando desesperadamente deter a vida que lhe escapava através das vagas, falavam mais alto que tudo.

Tentei apressar-me, todavia minha impotência aumentava e cada braçada, meus braços amoleciam e eu tomava mais água, mas ainda tinha consciência de que precisava chegar de qualquer jeito. Se morresse na tentativa, morreríamos os dois e a visão da morte foi de tal modo evidente, que olhei para a praia, na tentativa de imprimir em algum lugar da alma, a última imagem de nossos filhos que, despreocupados e alheios, brincavam na areia, agora tão longe, inatingível, quase um sonho...

Cenas e pensamentos, alegres e tristes, começaram a ser projetados de algum lugar de meu inconsciente, em fleches, obrigando-me a reviver uma vida inteira nesses momentos incertos.

O quadro patético, à frente uns poucos metros, confundia-se com outro, antigo, mas indelével em minha mente: um amigo de infância que assisti afundar em um açude de peixes. Ouvia-o, agora, como já o ouvira mil vezes, em pesadelos carregados de angústia e culpa, gritando por socorro. Via-o afundar-se agitando as mãos em desespero, até desaparecer completamente e eu ali, impotente, incapaz de uma ajuda salvadora, porque o que fiz, de nada adiantou e meu amigo morreu. Agora, em minha visão toldada, muitas mãos se agitavam, pedindo socorro, se misturavam e se confundiam. Ora eram as mãos do amigo, ora as dela. De repente eram mil mãos se agitando naquele mar nervoso e me atraiam.

As cenas se sucediam. Me vi num ônibus patinhando numa estrada esburacada. Chovia forte. Sentado na primeira poltrona, um nome martelava-me à cabeça: São Domingos, lugar para onde me transferia por tempo indeterminado e onde chegara no crepúsculo do dia. A cidadezinha, sem luz, à primeira vista não passava de poucas casas numa rua cheia de lama.

Revi minha primeira noite numa cama fria do único hotel e a incerteza do futuro.

Nosso primeiro encontro, quando voltei à rodoviária, na manhã seguinte, para buscar as malas, porque era lá que ela morava, apareceu claro e forte: uma criança quase, expansiva, de olhar inteligente, simpática, olhos verdes e grandes, boca de lábios bem feitos, cabelos longos, castanhos claros, quase loiros, bonita. Gostei dela. Ficamos amigos.

Começamos a sair juntos e dois anos depois, em razão de ela estar grávida, sem a certeza do tipo de sentimento que nos unia, surpreendemo-nos marcando casamento.

É desse período que as cenas surgem com maior nitidez, com cores mais vivas. Antes as via porque queria vê-las. Fechava os olhos e emergia no passado. Era voluntário. Via e revivia cada acontecimento, que de alguma maneira me marcara.

Imagem como essas faziam parte de meu patrimônio sentimental. Podia dispor delas à vontade. Agora, porém, era diferente, estava vendo tudo de olhos abertos e se os fechasse, seria para não abri-los jamais. Era minha última volta às coisas boas por que passara: as tardes dançantes. Os bailes. Os circos de tourada. A compra dos móveis. O enxoval dela. A gravidez. As primeiras briguinhas e uma igreja decorada, com muita gente nos cumprimentando, numa tarde fria de agosto.

E nem sobrava tempo para ter saudades. Fim de tudo.

Seu silêncio, nas horas mais difíceis, era algo impressionante. Os nove meses em que esperava nosso primeiro filho foram cheios de uma expectativa sombria, porque era cardíaca. Apesar de tudo, foi forte e à hora do parto não temeu, não pensou na morte, não gemeu. Todas as suas energias teriam que ser empregadas para ajudar nosso filho a nascer.

O parto foi demorado e sofrido. Eu estava à sua cabeceira e chorei, primeiro de aflição, depois choramos os dois, de alegria. Tudo saiu bem e o bebê era perfeito.

Vi e vivenciei mais duas gravidezes e dois partos normais.

Envolvido por esse turbilhão cheguei lá. Ela me olhou desesperadamente, seus olhos dizendo mil coisas, talvez de amor, talvez me acusando, talvez se despedindo. Estendeu-me as mãos e desmaiou.

O refluxo começou a levar-nos para fora e, sem forças para lutar, tomei mais água e perdi a noção de tudo. Todavia, não obstante ter-nos afagado o bafo da morte, voltamos da fronteira.

Quando despertamos, estávamos na praia, rodeados por nossos filhos, que também não entenderam nada.

MCSobrinho

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 14/11/2008
Código do texto: T1282785
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