OS DOIS MUNDOS DE TEREZA LOUCA

Tereza Louca invadiu a cidade aos gritos, numa das madrugadas mais frias de julho.

A população correu estremunhada às janelas e tremeu. A figura apocalíptica gritava e apontava ameaçadoramente às casas, até que a emudeceu o clarão da aurora.

Parecia mulher.

Às costas, um saco de aniagem.

Após identificarem-na, batizam-na de Tereza Louca.

À noite Tereza Louca grita: o escuro lhe faz mal. De dia faz caretas, que pretensiosamente querem ser sorrisos: é festa...

Piolhenta, cabelos desgrenhados, sujos, mal cheirosos, descolorados; não tem idade.

E sonha...

Dizem que é sonhando, quando permanece durante horas sentada no meio-fio da calçada, saco de lembranças jogado de qualquer jeito, cotovelos fincados sobre os joelhos, mãos apoiando o queixo.

Parece mesmo dormir...

Imersa nessa abstração, não esboça o menor sinal de protesto quando lhe puxam os cabelos ou lhe atiram pedras.

Alguém diz que já a viu chorando, outro discorda: “Essa criatura não chora”.

Indiferente ela vagueia, como alma penada, por dimensões invisíveis de mundos mal delineados e remotos, por entre formas também imprecisas, que aparecem repentinamente e desaparecem. Depois voltam e tornam a fugir, sem parar, atraindo-a sempre mais para o centro do mundo nebuloso. E ela as segue...

Um puxão mais violento, ou uma pedrada com mais força despertam Tereza Louca, todavia ela continua indiferente, olhando para o nada.

As roupas que ganha, veste-as umas por sobre as outras.

O pega-não-pega continua persistente, a intervalos cada vez mais curtos e irregulares, como dor de parto.

Às costas, o saco de recordações aumenta a cada lixeiro, a cada papelzinho colorido.

Tereza Louca ultimamente tem usado cada vez mais o meio-fio, porta entre seus dois mundos. De um, já nada sabe; no outro é cada vez mais participante, porém de uma participação alienada, que não dá à luz coisa alguma.

Tudo é névoa e até a garota, com a qual às vezes se confunde, a ponto de sentir-lhe as sensações sem sentir-se a si mesma, não sabe quem é, não sabe o nome, não sabe nada; não distingue nem as feições ou a cor da roupa. Se a garota sofre, Tereza Louca se contrai, resmunga, geme e as rugas da testa ficam menos profundas, quando a garota sorri.

Em fleches relâmpagos e distanciados, experimenta rasgos de consciência, que se transformam em quebra-cabeça. Não consegue juntar as peças e volta a se perder na bruma, em perseguição aos fantasmas, que se misturam e se confundem. Algumas vezes as imagens clareiam um pouco.

No último dia em que a cidade viu Tereza Louca, sua relação com o mundo perdido foi de uma relevância incomensurável. Durante o transe, no meio-fio, ela consegue distinguir claramente os traços fisionômicos de um homem: é o pai da garota, com a qual às vezes se confunde. Gosta dele. Suas expressões se suavizam, num arremedo de sorriso. Esse enlevo, porém, termina na aflição, porque outro homem aparece, enorme, diabólico e toma o lugar do primeiro. Tereza Louca se agita, angustiada. Grita... levanta-se num salto, olha ao redor e sai apressada, quase correndo. Anda durante meia hora e retorna mais calma. À medida que o faz, diminui o passo, até parar no ponto exato em que estivera há pouco. Senta-se, toma a posição anterior e não encontra mais o tal homem, mas a garota, na qual incorpora.

Tudo começa a ficar claro, a se delinear. Tereza Louca vê tudo, sente tudo, como jamais acontecera antes. Começa a fazer parte daquele contexto, como se vivera sempre ali. Está à vontade, respira tranqüila. Feliz?

Tereza Louca e a garota são a mesma. O mesmo desejo, o mesmo pensamento, a mesma apreensão: é quinta-feira, sexta o pai aniversaria. Precisa ir. Pensa em fazer-lhe uma surpresa, por isso não gostaria de esperar que lhe viessem buscar. Pede permissão à freira, diretora do colégio e não ganha. Chora... a freira cede.

Mal amanhece o dia, “Tereza” sai à rua. Espera um pouco e uma carona aparece. Conhece o motorista, é Seu Belarmino, um fazendeiro vizinho e amigo de seu pai.

A viagem começa descontraída. Seu Belarmino conta histórias engraçadas e ela, distraída, não percebe que deixaram a estrada da fazenda e quando se dá conta, fica assustada. Belarmino a tranqüiliza, dizendo que é um atalho e que chegarão mais depressa. Ela protesta, argumenta que já andaram muito, que o lugar é assustador e perde a calma quando o jipe pára. Seu Belarmino está esquisito. Com voz rouca, transbordando pecado, diz que estão a quarenta quilômetros da casa mais próxima. A garota fica ainda mais assustada, diante daquele sorriso cínico, daquele olhar obsceno e devorador que lhe desnuda, daquela mão enorme e cabeluda que lhe começa a subir pela perna. Desespera-se.

O pesadelo chega ao auge num torvelinho. A garota está fora de si, alucinada. Tereza Louca se contorce, resmunga, geme, grita, sacode freneticamente a cabeça, pula, pega o saco, põe-no às costas e parte.

De onde viera? O que fizera? O que sofrera? Só Deus sabe.

Grita. Ri. Não fala. Não chora. Diz um nome: Belarmino.

MCSobrinho