AMOR, INGRATO AMOR!

Mato Grosso do Sul, 1973.

Seu Benedito era um viúvo de sessenta e poucos anos. Morava em um antigo sítio no interior de Mato Grosso do Sul, que tinha sido de seu bisavô e vinha sendo passado de geração em geração. Tomava conta do sítio sozinho e sabia fazer isso como ninguém, afinal nascera e crescera ali.

Conhecia cada pedacinho daquele lugar e, mesmo vivendo longe da cidade, conseguia se virar muito bem com os próprios recursos do sítio: comida, calor e uma grande variedade de ervas medicinais. Vivia há anos assim. No mesmo sítio. Na mesma calmaria. Na mesma solidão.

Foi quando Firmina apareceu em sua vida. Seu Benedito, o solitário viúvo, acabou transformando-a em uma companhia indispensável para todas as horas. Vivia a bajulando. Às vezes, durante a tarde, caminhavam juntos pelo sítio. Iam-se lá os dois pela relva calma. O sol mansinho, tímido, e um vento morno e vagaroso soprando suas faces. Caminhavam durante horas admirando a natureza, e voltavam para casa somente no finalzinho da tarde. Seu Benedito vivia contando suas histórias com grande eloqüência. As destemidas vitórias, as grandes glórias e as terríveis derrotas. Ria e chorava das lembranças.

Firmina não prestava muita atenção em suas palavras. Ficava apenas deleitando-se, durante todo o percurso, com aquela voz tranqüila. Esperava ansiosamente pela hora em que a história chegava a um clímax cômico e, logo em seguida, uma breve tristeza. Seu Benedito abria um largo sorriso e, então, fechava a cara. Era nessa hora que passava a mão na cabeça dela como se dissesse “É a vida, o que se há de fazer?”. Seu afago, então, levava Firmina a um estado de esplendor completo. Não tinha dúvidas, era completamente apaixonada por Seu Benedito e tinha certeza que o recíproco também era verdadeiro.

Um dia, porém, Firmina acordou no meio da noite amarrada a cordas. Deitada no chão, mal podia movimentar-se. Um pano velho não lhe deixava abrir a boca. Começou a se debater atordoada, com o coração pulsando medrosamente, quando viu algo inacreditável: Seu Benedito com um machado em mãos.

- Minha querida Firmina. Desculpe-me companheira, mas eu não tenho escolha. Se eu pudesse te fazer entender... – disse com uma voz tristonha.

Firmina, incrédula, fechou os olhos preparando-se para sua inevitável morte. Quando Seu Benedito empunhou o machado o mais alto que pôde, a fim de conseguir cortar o pescoço de uma só vez, não causando sofrimento algum, uma sombra vociferou atrás dele:

- Não se mexa! Isso é um assalto!

Com o susto que tomou acabou virando-se para a sombra, com o machado ainda sobre sua cabeça. O bandido, assustado, acertou dois tiros em seu peito. Quando o corpo de Seu Benedito atingiu o chão já não possuía mais vida. O comparsa do atirador entrou ofegante:

- Mas que merda, Evaldo! O que é que você fez?

- Porra! Esse velho safado quase me acertou com o machado!

O comparsa, então, observou na escuridão do fétido curral uma sombra no chão e compreendeu o ocorrido.

- Te acertar com o machado? O cara ia matar uma vaca! – falou dando um tapa de repreensão na cabeça do bandido, enquanto apontava para Firmina. – Essa é a última vez que você pega numa arma! – completou arrancando-lhe a arma da mão.

- Grande idéia a sua também! Assaltar um velho que não tem dinheiro nem para comprar comida! Olha a hora que ele estava sacrificando a Mimosa para comer...

- Cala a boca! Vamos pegar logo o que pudermos e dar o fora daqui antes que chegue alguém. – disse interrompendo rispidamente.

Enquanto Evaldo procurava algo de valor em Seu Benedito, acabou atraído pelo olhar de Firmina. Parou de fuçar os bolsos do cadáver e começou a encarar aqueles tristes olhos penetrantes, quase chorões, da vaca. Começou a se aproximar, como se pudesse ver em seus olhos um sentimento profundo; como se fossem humanos. Sentiu uma estranha sensação. Parecia que a vaca tinha realmente algo para lhe falar.

- Não, não pode ser... – sussurrou consigo mesmo baixinho.

Aproximou-se ainda mais daqueles olhos amargos que não se desviavam do corpo do velho em nenhum instante. Observou as ataduras que lhe amarravam a boca. O velho, de certo, não queria ouvir os mugidos de sofrimento da vaca. “Será que estou tendo alucinações?” pensou enquanto tirava as amarras da boca.

- Ei vaquinha... quer falar alguma coisa? – murmurou Evaldo, preparado para ouvir uma voz humana saindo daquela enorme boca...

- Múúúúúúúúúúúú! Múúúúúúúúúúú!

- Eiii! Evaldo! Que merda de barulheira é essa agora? – gritou o comparsa enquanto vinha correndo em sua direção. – Tá ficando maluco? Quer que nos peguem, é?

- Múúúúúúú! Múúúúúúúúú!

- Cara, não é isso... é que eu pensei que... não sei.. eu pensei que...

- Múúúúúúúúú! Múúúúúúúúú! Múúúúúúúúú!

- Pensou que o que hein? Você só faz merda! Vamos dar logo o fora daqui! Maldita vaca maluca! – vociferou enquanto saia correndo em companhia de seu companheiro, desaparecendo na escuridão da noite.

- Múúúúúúúúúúúúúúúúúúúúú.....

Só não imaginavam Evaldo e seu comparsa que a vaca berrava, em seu verbete, algo que nunca iriam conseguir compreender. Firmina passou, então, o resto da noite mais triste de sua vida ao lado do corpo de Seu Benedito, seu falecido amado, chorando e repetindo a única palavra que lhe cabia naquele momento:

“Ingraato! Ingraaato! Ingraato!”

Josadarck
Enviado por Josadarck em 30/07/2008
Reeditado em 08/03/2009
Código do texto: T1103879
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