O mistério do Ana-Maria

A escola Municipal Tharsila do Amaral, em Irajá, segue religiosamente seus horários. As residências, ao redor do colégio, poderiam até acertar seus relógios pelo som da sineta que tocava ao meio-dia, por dez segundos. Logo em seguida ouviam-se latidos e gritos das crianças invadindo o pátio externo. O ritual repetia-se de segunda a sexta-feira, durante o ano letivo. O horário do recreio era o evento mais esperado do dia, tanto por alunos, quanto por professores. Uma pausa na rígida rotina do ambiente das salas de aula.

Na secretaria a reunião dos docentes transcorria normalmente, algumas professoras reclamavam das dificuldades da vida, outras de algum problema doméstico. Súbito, uma criança invade a sala aos berreiros:

– Tia Carmem? Tia Carmem? – assustadas, as outras professoras tentam confortar a criança. Carmem acabara de sair do toalete, aproxima-se dele e abraça-o.

– O que foi Guto?

– Meu “Ana-Maria” sumiu! – responde soluçando.

– Tome Carmem, dê a ele. – outra professora oferece um copo com água e açúcar – Isso deve acalmá-lo.

Antes de entregar-lhe o copo, a criança é posta sentada em uma poltrona. As gordas perninhas balançam no ar.

– Assim que você melhorar nós iremos procurar seu bolinho, está bem?

Guto consente com a cabeça, pois esta com ambas as mãos segurando o copo e terminando de beber a água. Passados alguns minutos a professora Carmem surge no pátio de mãos dadas com o menino.

O recreio dura trinta minutos, as crianças ficam espalhadas por todos os cantos. Algumas estão no refeitório merendando, outras correndo pelo terreno e outras sentadas comendo o lanche que suas mães haviam preparados.

– E então Guto, me diga onde você estava?

– Ali, sentado naquele banco. – Guto aponta um canto do pátio, junto à grade que divide o terreno da escola para a rua.

– Quem estava contigo?

– Primeiro eu “tavo” sozinho, aí o Ricardinho me chamou pro pique-pega, aí eu fui, aí, quando voltei, meu “Ana-Maria” tinha sumido!

– Mas você deixou seu lanche aqui, sozinho?

– Foi, ué. Como eu ia brincar de pique-pega segurando ele?

– Devia ter comido primeiro.

– Minha mãe fala que faz mal correr de barriga cheia!

– Tem razão. Mas e agora como vou saber quem pegou seu bolo? – Carmem pensa em voz alta enquanto vasculha o pátio com o olhar.

– Foi o Zelão!

– Hein?

– Foi o Zelão, eu sei.

– Mas você o viu comendo seu bolo?

– Não vi, mas ele disse que ia pegar no recreio.

– Essa agora... – Carmem torna a olhar em volta para ver se encontra o menino acusado – Fica aqui.

Pouco tempo depois Carmem retorna acompanhada.

– Zelão, fala agora.

– Mas, tia, eu já disse, não comi bolo nenhum.

– Você falou que ia pegar meu bolo. Falou sim, que eu ouvi. – Guto intervém.

– Calma Guto, deixa a tia falar, está bem?

– Eu juro tia, eu “tavo” lá jogando bola com meus amigos, eu nem vi esse moleque!

– Olha a boca Zelão!

– Desculpa tia.

– Foi ele tia! Foi ele!

– Guto, se você não viu, não pode falar isso!

– Tia, deixa eu chamar meu amigo que “tavo” comigo?

– Está bem. – Carmem começa a perder as esperanças.

Zelão dispara. Carmem e Guto ficam olhando de longe, esperando que ele volte logo. A professora olha para o relógio, ela demonstra preocupação, o tempo de recreio esta acabando, faltam menos de dez minutos. A mãe do Guto é daquelas encrenqueiras, certamente vai arrumar confusão pra cima dela, por isso empenha-se em resolver o mistério.

Carmem até pensou em sair para comprar outro bolinho, pois já dá o lanche como perdido, mas o mercadinho é longe da escola. Ela também pensa que não pode deixar o “crime” insolúvel e precisa punir o criminoso exemplarmente para desencorajar futuros delinquentes.

– Aqui tia, não falei, não falei? – Zelão retornava com o amiguinho.

– Oi tia, eu e o Zelão ficamos ali ó, jogando bola. – o menino apontava para um local da quadra.

– Viu Guto, não foi o Zelão, eles estavam jogando bola. – Carmem volta-se para a vítima.

– Mas então quem pegou meu “Ana-Maria”? – Guto ameaça voltar a chorar – Vou contar pra minha mãe!

Essas palavras arrepiaram a professora até o fundo de sua alma, já imaginava uma reunião com a diretoria, o conselho de ética reunido, ela diante de um tribunal de justiça, milhares de repórteres, e suas câmeras apontadas para ela, cartazes prós e contras, gritos de ordens, bombas de lacrimogêneo, o Papa pedindo orações públicas, pedindo paz...

– O que foi? – outra criança aparece.

– Meu “Ana-Maria” sumiu! – Guto está inconformado.

– Quem é você?

– Ricardinho.

– Ah, foi você quem chamou o Guto pra brincar?

– Pique-pega.

– É, de pique-pega.

– Fui eu, sim, tia.

Nesse momento uma multidão de crianças já rodeava o grupo.

– Só estavam vocês dois na brincadeira?

– Não tia. Tinha mais gente, eu, Guto, Biel, Dinho, Culi e o Vaguinho. – enquanto falava o menino apontava um a um.

– Nenhum de vocês viu quem pegou o bolinho do Guto?

– Não! – a resposta foi uníssona.

Por essa Carmem não esperava, o que parecia ser um simples caso de furto, tornou-se um grande mistério. Ela descarta a hipótese de crianças na faixa de 7 e 8 anos planejar algo tão complexo, mas o sumiço do bolinho continua sem solução.

– Você tem certeza de que trouxe o bolinho pro recreio? – Carmem já começa a duvidar da história toda.

– Sim tia, eu trouxe, aqui ó! – Guto amostra o embrulho do bolo. A evidência não deixa dúvidas.

– Tá bom, como você fez então? Conta tudinho, tim-tim por tim-tim.

– Eu abri o pacote e coloquei aqui, em cima do banco, aí quando voltei, só tinha o papel!

– Você abriu pra comer, mas foi brincar e deixou o bolinho no banco. Foi isso? – Carmem tenta ordenar os fatos para entender. O tempo está esgotando.

– Não tia, eu não ia comer!

– Então por que abriu o pacote? – a mente de Carmem está longe, imaginando as discussões na hora de entregar as crianças às suas mães, policiais invadindo o colégio, ela sendo arrastada para dentro de viaturas, o presidente da república exonerando-a em rede nacional...

– Eu ia dar para Kika!

– Quem é a Kika? – a professora olha em volta para ver quem é a tal menina (talvez eu possa conseguir uma transferência para lecionar no Acre).

– Ela! – Guto aponta para o outro lado da cerca da escola.

– Vem Kika, vem! – as crianças gritam para a cadela que está após a cerca. Ela abana o rabo de felicidade, parecia acostumada a situação. Aqueles latidos, ouvidos no início da história, eram dela. Carmem olha para a cadela, pede um doce a uma das crianças e coloca-o em cima do banco, exatamente onde Guto havia deixado antes o bolinho. Kika mete o focinho no meio das grades, apanha o doce e sai.

Fim do mistério.

Marcelo Oliveira.

M P Cândido
Enviado por M P Cândido em 13/04/2017
Reeditado em 06/05/2019
Código do texto: T5969808
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