Acalanto
Para Diana P, em honra a toda a sua doçura.
Hoje, no Brasil, já não existem reis, princesas e grandes castelos. Porém, antes dos pais dos nossos avós nascerem, aqui viveram duques, condes, e, sim, até mesmo reis e princesas. Todos eles moravam em castelos imensos e impressionantes, cheios de torres e bandeiras, como nos contos de fadas de antigamente.
No nordeste do Brasil, bem pra lá do rio São Francisco – ainda pra lá, muito, muito longe – havia um castelo encantado. Porém, não era um encanto lá muito alegre; na verdade, nem era mesmo encanto: parecia mais com um desencanto, como uma valsa. Esse desencanto não tinha nada de mágico, nem foi lançado por uma bruxa. O palácio era desencantado porque a solidão vivia por lá.
Nesse castelo, morava um rei muito velho e triste. Era tão velho que sua barba era inteira branca, e tão triste que não tinha paciência nem vontade de cortá-la havia vinte anos. De tão grande que era, o rei precisava prender a barba no cinto para não tropeçar. A tristeza, que o impedia de fazer a barba, também não deixava que ele fizesse mais nada. Por isso, ele já começava a ficar cego, porque havia muito tempo que não lia e nem olhava o mundo ao seu redor; estava quase surdo, porque só tinha tempo para ouvir a solidão e mais nada; suas pernas eram fracas, porque ele preferia ficar sentado em seu grande trono de ouro ao invés de caminhar; e seu cérebro já andava devagar, porque o rei não gostava de pensar: para ele, pensar era muito dolorido, porque só era capaz de refletir sobre suas angústias. Assim, o pobre rei vivia fechado dentro de si mesmo, afastado do resto do mundo, preso em sua própria dor.
A tristeza do rei tinha uma razão: muitos anos atrás, quando ele era feliz e cheio de vida, a rainha, sua linda esposa, havia morrido, deixando-o sozinho com uma filha recém-nascida. O rei não foi capaz de superar a sombra da morte daquela que havia enchido seus dias de alegria, e passou o resto da vida a lamentar sua solidão.
No palácio desencantado, também vivia, portanto, a filha do rei. Ela era linda, tão linda quanto sua mãe tinha sido: tinha olhos escuros e grandes, cabelos negros e cacheados, que caíam pelas suas costas como uma cachoeira, e uma cara permanente de curiosidade. O rei triste era o único que não sabia o quanto ela se parecia com a rainha, porque sempre olhava para ela mas não a via.
A princesa, embora linda, também era infeliz. Em toda a sua vida, nunca teve ninguém para conversar, nem um amigo com quem compartilhar a beleza de seu grande castelo. Por alguns anos, ela tentou tirar o rei de sua eterna lamentação pela própria desgraça, mas com o tempo percebeu que era inútil. Depois, todos os dias ela procurava algo dentro do enorme palácio que pudesse preencher sua solidão: leu todos os livros que havia na grande biblioteca, ouviu todas as músicas conhecidas e aprendeu tudo o que pode com todos que queriam ensinar. Mas chegou o dia em que não havia mais nada ali dentro para ela, e o rei a proibia de sair do castelo, pois achava que o mundo lá fora só poderia oferecer perigos, medo e dor.
Então, a princesa começou a sonhar. Sonhava com todo tipo de coisas, mas o que ela mais gostava era de sonhar com o mundo fora dos muros do seu palácio. Dia e noite, ela se debruçava na janela do seu quarto, sonhando que além do seu castelo – muito além, e ainda mais belo – havia um outro reinado e um outro rei, que gostava de conversar e brincar, que cantava e dançava e era capaz de oferecer companhia.
Certa noite, quando o rei, como sempre, fazia coisa nenhuma e todos os criados do castelo estavam dormindo, a princesa decidiu fugir. Por um momento, ela ficou tão surpresa por nunca ter tido essa ideia que não conseguia nem se mover. Depois, sentiu medo: e se seu pai tivesse razão, e fora do castelo só existisse perigo? Mas então ela lembrou de todos os anos em que viveu sonhando com outra vida e criou coragem. Vestiu uma grande capa escura, que cobria todo o seu corpo, colocou em uma bolsa os seus livros preferidos e algum dinheiro e, silenciosamente, saiu correndo do castelo.
Com medo de ser reconhecida, ela só parou de correr quando já estava bem longe. Então, saiu andando sozinha ao luar. Era uma noite quente, sem vento, e de lua cheia. Uma daquelas noites em que a lua está tão clara que é como se fosse dia, e o sol tivesse decidido ficar azul.
Por muitos dias, ela andou sem encontrar nada e ninguém, até começar a imaginar que o mundo, afinal, era vazio. Pela primeira vez na vida, ela sentiu o desespero de ter muita fome e nenhuma comida, e quase se arrependeu de ter fugido. Foi aí que encontrou uma cidade e muitas pessoas.
A partir daí, a princesa – que já não era princesa, porque não queria mais ser – descobriu muitas coisas. Descobriu coisas grandes e bonitas, como o mar, a arte de fazer uma planta brotar da terra, os amigos, que a vida podia ser simples e que não é preciso estar cercado de muita gente para não estar só. Descobriu coisas grandes e tristes, como o abandono, que havia muita gente que vivia sem saber o que ia comer no dia seguinte e que é possível se sentir solitário no meio de uma multidão. E, acima de tudo, ela descobriu que o mundo é tão grande que sempre há pessoas e coisas novas e interessantes para conhecer, mesmo que você viaje a vida toda. Nunca sentiu saudades, nem nos momentos mais difíceis, de viver cercada de luxo, mas presa na gaiola dourada que era seu castelo.
Quanto ao rei, ele também descobriu uma coisa, quando despertou de seu sono desencantado e se viu só: o verdadeiro sentido da solidão. Ele ocupou o lugar da princesa na janela do castelo, olhando o mundo lá fora e pensando onde ela poderia estar, até endoidecer de tristeza, começar a ver na noite coisas que não existiam, por ter abandonado a única pessoa que quis sua companhia.