O menininho

Despertar o interesse das pessoas nunca foi o meu forte. Sempre fiquei flutuando os meus olhos por bocas que exalavam o desinteresse. Eu raramente recebia algo além de um aceno que denunciava a pena que sentiam de mim. Eu vivia permanentemente à margem e já estava mais do que acostumada com isso. Mas de uns tempos pra cá, me tornei o centro das atenções. Todos queriam saber como eu estava, eu recebia ligações, mensagens e conseguia perceber que a minha presença era querida. Coisa que jamais havia acontecido. Era uma experiência completamente nova, que em pouco tempo foi capaz de me deixar mal acostumada. Eu adorava. Já não cabiam mais presentes em casa. Assim, eu ía esquecendo o que significava a solidão. Sempre tinha alguém comigo. As pessoas me olhavam de um jeito diferente. De uma hora pra outra, me tornei alvo de gentilezas. E pra quem sempre foi um estorvo, isso é algo que bagunça a cabeça. Tudo estava mudando muito rápido e eu não conseguia encontrar uma explicação. Até meu corpo estava diferente. Ganhei algumas curvas, nada atraentes. Mas já dava pra dar uma disfarçada naquele corpo magricela. As pessoas passaram a me tocar. E dava pra sentir uma mistura de cuidado e curiosidade. Difícil de entender. Mas aquilo foi ganhando uma intensidade sem tamanho. E às vezes, eu ficava até incomodada. Sentia o ar abafado e um desconforto minimamente inusitado.

Lembro quando o médico me disse que a cegueira tomaria conta do meu corpo ao longo dos anos. Mas há muito tempo, eu já havia aprendido a conviver com os vultos que me sobraram. Eu sabia que não era daí que vinha tamanho desconforto.

Hoje eu vim ver como está essa menina. Na maioria das vezes, era isso o que eu ouvia, e me sentia lisonjeada, pois que eu me lembre, já havia passado dos trinta. Eu nunca pude me deparar com os olhos de alguém fixados nos meus. Antes de tudo ser só vulto, eu vivia a margem. Com as cores do mundo apagadas. Assim como estão agora.

Aquela frase foi me tirando do sério. No fundo eu sabia que não era mais uma menina. E sabia mais ainda que ninguém queria realmente saber como eu estava. Isso já estava ficando pesado. E realmente, eu sentia um certo peso quando caminhava. Coisa da minha cabeça. Eu estava confusa.

- Podem levá-la. A ambulância está chegando.

Ouvi. E nada pude fazer. Quando percebi já estava dentro do carro.

- Hoje vamos ver o seu bebê.

Uma mulher, que para mim não passava de um abominável vulto branco, disse.

O meu corpo havia sido invadido. Sem que eu pudesse me dar conta, estava numa relação simbiótica, que para mim, agora soava muito mais parasítica. Eu não queria partilhar. Não me sentia mais nem dona de mim mesma. Era horrível, um corpo, outro corpo, no meu corpo. Bastou esticar um pouco as mãos para que eu pudesse tocar minha barriga. Algo enorme, que me pesava impiedosamente. Dei graças por estar praticamente cega. Não queria ver, o quão bizarro meu corpo estava. Eu gritava de desespero, pois neste momento vi que aquela atenção ilusória não era pra mim. Era pra esse ser, sem nome, sem cor e sem sexo. Intruso em mim. Dono de nada. O desespero acabou com todas as minhas forças. Me entreguei. Pude ouvir o médico dizendo que era um menino. Pouco me importa. Agora tudo se encaixava e nada fazia sentido. Menininho. Cresceu de mim. E teve tudo o que eu sempre almejei sem ao menos ter precisado estar vivo. É certo que era muito mais do que eu sempre fui. Peso morto que enfim serviu pra alguma coisa. Menininho das minhas entranhas que eu nem pude ver. Melhor. Assim ele cresce sem saber de onde veio. Aí eu terei a minha maior conquista. E não é necessário que seja em vida.

Guilherme Moura
Enviado por Guilherme Moura em 28/02/2014
Reeditado em 03/03/2014
Código do texto: T4709632
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