Julia Iara
Júlia tinha seus olhos verdes de gata postos no mar. O constante ir e vir das ondas a lançara em uma espécie de torpor reverente, e ela não notava os fios revoltos de cabelo que se desprendiam do complexo coque em que ela trabalhara por meia hora e ricocheteavam em seu rosto ao sabor da brisa. Havia horas que ela estava sentada ali, no cais, a coluna atipicamente ereta, apenas olhando, sem pensar em nada – naquele momento, ela achava, pensar seria desesperar-se, insistindo em perguntas cujas respostas ela desconhecia.
Em contraste com o turbilhão de pensamentos – todos eles meio cinzentos – que ameaçava lhe assaltar ao menor descuido, o mar estava plácido. Não havia banhistas pontilhando de diferentes cores aquela imensidão azul, de modo que Júlia podia admirá-la sem sobressaltos. Tudo ali – a calma das ondas geladas que lhe lambiam os pés; o cheiro de pescado e sal que impregnava o ar; a brisa fresca que sempre vinha aliviar o calor de São Luís – tudo ali terminara por incutir nela uma falsa e resignada serenidade.
Ainda estava assim, indiferente à dor de estar sentada por horas na mesma posição, quando a noite caiu. A brisa amena transformou-se num sopro gélido e furioso de vento, que trouxe consigo uma presença também muito fria, velha conhecida de Júlia.
Quando Iara se sentou ao seu lado, um misto de identidade e estranhamento apossou-se de Júlia. Sim, era a mesma pele branca, quase translúcida, que ela via no espelho. Eram os mesmos cabelos vermelhos e revoltos, tão incapazes de seguir instruções quanto ela mesma. Eram os mesmos olhos verdes oblíquos, iguais aos daqueles elfos dos livros de Tolkien – uma Arya ruiva, não era? No entanto, havia uma frieza naqueles olhos que ela não era capaz de fazer rutilar nos seus, e aquela boca fina e desenhada – que poderia ser a sua! - virava-se para cima, sempre escarnecendo de tudo, e naquele momento parecia dizer que a confusão de Júlia lhe divertia imensamente.
Por muitos minutos permaneceram lado a lado, em silêncio – Júlia temendo arrebentar a tênue calmaria e abrir as comportas para a enchente de dores que a espreitava; Iara divertindo-se com o desamparo da sua companheira e apreciando a sensação de poder que experimentava por saber que Júlia contava desesperadamente com sua ajuda. Por fim, sua voz límpida de soprano cortou o ar:
“Você já conhece minha opinião, pequena, e sabe que tenho razão.”
Como se saísse de um transe, Júlia assentiu, sentindo vertigens pelo violento giro de sentimentos que ela evitara o dia todo.
“E por que, então, estou aqui?” Tornou Iara, implacável.
“Eu apenas...”
O sopro agudo da voz de Júlia tornara-se uma espécie de rosnado gutural, por falta de uso. Ela pigarreou e tentou novamente, hesitando, sem saber ao certo o que dizer:
“Eu só esperava que você pudesse... não sei, ter... mudado de ideia.”
Iara riu, uma daquelas gargalhadas altas características de Júlia, que se encolheu.
“Ah, pequena... não diga isso, você sabe que a estupidez não lhe cai bem. Examine suas possibilidades: essa é a única viável.”
Júlia quis falar, mas um nó formara-se em sua garganta em sua luta silenciosa contra as lágrimas. Embora Iara soubesse de tudo o que lhe ia na cabeça, não queria chorar na frente dela.
Vendo-a incapaz de falar, Iara afagou os cabelos de Júlia, afetando um tom meigo que simplesmente não fazia sentido naquela voz:
“Eu sei, branquinha, eu sei. Mas como você pode viver o que lhe resta sem saber se ama sua família, sua música ou sua garota? Você não pode ter o três, mas não consegue optar. Não é mais caridoso acabar logo com isso?”
Júlia encarou Iara, com a primeira lágrima equilibrando-se perigosamente nos cílios inferiores, com uma mistura de medo, raiva e cega reverência.
“Pensei que você existisse para me ajudar.”
Iara fez um gesto de desdém com uma das mãos.
“Eu nem sequer existo, criança! Você precisa optar: vai procurar um psiquiatra e encarar a vida real e gelada ou seguirá meu conselho?”
Júlia tremeu de frio e medo.
“Isso é bem cruel.”
“A sua cabeça doente me criou assim, bebê.”
Iara tinha razão, é claro. Júlia encarou as próprias mãos, cujos dedos esguios ela sonhara em fazer correr sobre as teclas de um piano, e que agora estavam trêmulos. Desesperada, ela pesou uma vez mais tudo o que Iara lhe dissera, embora já soubesse que não tinha outra opção. Por fim levantou-se.
“É melhor fazer de uma vez, então.”
Mesmo de costas, soube que Iara assentia em silêncio.
Lutando bravamente para não olhar para trás e ver as luzes de sua amada São Luís, Júlia caminhou até a beirada escorregadia das pedras do cais e abriu os braços.
Naquele momento, quem a visse de longe poderia pensar que ela também não era real. Seu vestido preto agitava-se violentamente ao seu redor, assim como seus cabelos que o coque desistira de tentar conter. Sua pele, branca por natureza, azulava-se sob a luz da lua.
Júlia respirou profunda e lentamente várias vezes, apreciando a sensação. Depois, com os olhos bem abertos, deixou-se pender para a frente.
O tempo pareceu transcorrer mais devagar enquanto ela se aproximava da água. Quando finalmente a atingiu, pode registrar apenas o frio e a dor do sal invadindo seus pulmões. Depois, nada. As vozes em sua cabeça se haviam calado, finalmente.