Uma Cena
Do alto é possível ver objetos distantes, mal podendo distinguir o que são. Por dedução, sabe que as pessoas estão afastadas dali, percorrendo ruas movimentadas de uma metrópole. A ponte não é sobre nenhum rio mencionado em artigos históricos de grande valia, ás águas passam turvas, sem nenhum atrativo daqueles grandes leitos. É possível enxergar o saco de lixo sendo conduzido pela correnteza. Pássaros no céu, que até se confundem com gaivotas rodopiando, até os olhos distinguirem claramente os abutres, que devem espreitar alguma carniça nas imediações. Se tivesse, nem que fosse uma dose de algo para beber, mas sente o gosto do copo mal digerido. O vento se intensifica, fazendo com que cabos de alta tensão se toquem, causando estrondo e clarão, feito relâmpago e trovão, ou o mais próximo de um sol, com aquela claridade em tom azulado. Como seria a aurora de explosões atômicas?
O livro é desfolhado, com páginas levadas pelos ares. Poema de Pessoa que voa. Fica a capa nas mãos, com aquele título oco. Nem faz calor para suar, nem frio que possa tremer. Um nublado morno. A estação é uma, mas a atmosfera é outra. Talvez o mundo tenha parado, por isso não escuto nada, ou antes, escuto pouco. Não, o mundo segue sua sina, já que os abutres voam ao redor da carniça. Deveria eu mesmo ter escrito poemas, mas falta inspiração que conduza a pena. Fecho os olhos, podendo sentir com mais precisão os batimentos cardíacos, o peito inflando com o ar que invade os pulmões. Abro os olhos que parecem lacrimejar, enxergando longe um ponto que se afasta, um óvni, já que não sei identificar o que é. O sorriso brota nos lábios, como a expressão de um alienado que ri sem motivo. Toco o rosto, acariciando a barba, indo até os cabelos, assegurando-me de que pelo menos em face, estou ali.
Contemplo o fluxo das águas, que me leva só até a curva que esconde o porvir. Me detenho na árvore de galhos tortos, sua folhagem toca o rio, deixando escapar folhas que são transportadas feito filhos abandonados. Nuvens se amontoam, feito montes de fumaças que tendem a obscurecer o céu. Não falo para poupar o eco. Memórias sempre assaltam o pensamento, fazendo surgir uma coleção de imagens, que se avolumam, a ponto de não distinguirmos uma ordem, apenas a lembrança dos momentos que parecem incentivar alguma saudade. O tempo se perde em horas não contadas, fazendo com que a percepção do movimento, seja apresentada pela paisagem que age. A capa é largada, no momento que os pés são descalços, pisoteando as pequenas pedras que ferem a sola lisa e acostumada ao conforto do calçado. A brisa toca os lábios, em um beijo tão sutil, que chega a arrepiar.
Ergo o corpo na beirada e me inclino. Passa a velocidade ainda mais rápida, extinguindo os sons em um instante. Se os abutres alcançaram a carniça, é uma probabilidade plausível, como a da brisa ter tocado outros, flertando sem nenhuma fidelidade a mim, mesmo depois de roubar-me um beijo. As nuvens devem se dissipar, não se pode ficar nublado para sempre, o que facilitará os raios solares que ofuscarão aquele estrondo dos fios e o pequeno flash da eletricidade. Os lixos tendem a continuar boiando, já que a metrópole está próxima, embora, nem tanto. Elementais devem ter se regozijado com a leitura do Pessoa, apesar do livro ser fabricado através da devastação dessa força anímica. A árvore continua varrendo, mesmo com o prejuízo de desgastar sua prole. Eu sou queda, eu sou corpo, eu sou mudo, mergulhando sem trégua, nesse abismo de poço, até que me denominem, defunto.