A Casa

Essa habitação desabitada. Percorro os corredores vazios, com resquícios de terem sido ocupados. Os quartos com lençóis limpos, os guarda-roupas repletos de vestimentas. A escrivaninha com objetos deixados ao acaso, parecem um caos que admite vida. As cortinas fechadas deixam a penumbra tomar conta do ambiente. A luz se mantém apagada, enquanto o sol resiste aos empecilhos e adentra o recinto, clareando de forma crepuscular. Os utensílios são uma espécie de composição de um museu recente. Fica para uma possível posteridade, aquela coleção de peças adquiridas, que somadas, formam um gosto burguês de decoração.

De repente, pareço ouvir algo. Transito rapidamente, em busca do som. Nada encontro. Apenas os cômodos escancarados. Nada impede minhas pequenas invasões. Não sou um intruso, mas convidado. A estante de livros, inflexível, apresenta cores de rígido retângulos mal organizados, com títulos variados, que instigam a visão de um leitor curioso. Enquanto as sapateiras, repletas de calçados, parecem vomitar partes de pares de sapatos, que estão soltos, desamarrados. Até mesmo os óculos, pendem sem um para de orelhas que possa vesti-los.

Os tapetes ainda conservam alguns pelo perdidos. Fios de cabelos são encontrados com freqüência, espalhados pelos locais mais inesperados, como se fossem um mapa. No banheiro, tudo parece tão frio, a sensação de secura é deprimente, a própria água da privada parece de uma calmaria, uma espécie de lago sem vida. O chuveiro com seus poros secos, sem um esguicho sequer. Enquanto as toalhas dobradas, parecem endurecidas como os azulejos pálidos que servem de fundo. Só mesmo os pisos, revelam riscos que parecem rugas de um terreno vivido. O próprio sabonete ficou pedregoso, chegando a rachar.

Na cozinha, é possível contemplar a pia. Riscada e ferruginosa. Os talheres estão ali, posso pressenti-los, embora estejam longe das vistas. O armário pode ser o grande esconderijo. A geladeira está ligada, embora desabitada. Só o gelo gasoso sobrevive, enquanto alguns estalos do motor fazem o lugar ter algum atrativo auditivo. Na cristaleira consigo enxergar a prataria, que reflete meu olhar sombrio. Diante do espelho eu paro. Olho pra mim e não me enxergo, sou um outro que não é, ou seja, não sou, mas ainda consigo imaginar a possibilidade de ser, através desse não-eu, que me faz em cacos integralmente, nesse espelho vazio.

A copa, com sua mesa de ângulos embrutecidos, de uma rusticidade que me faz desejar arrancar-lhe lascas. As cadeiras em volta são como membros que celebram um sabbat. O lustre é o astro rei. O sofá, com seu ar bonachão, espera algo que comprima o seu estado balofo. A opressão invade-me o peito. A mobília parece se comunicar, me fazendo passivo diante de sua imposição comunicativa. Eu transito pelo ambiente, enquanto o cenário é indiferente, por isso toco e tento interagir com o inanimado. Ouço a fechadura. Parece estar sendo violada. É a chave que estupra essa porta, deixando o habitat acessível. Embora o vento seja mais sutil, explorando frestas-vielas.

Agora reparo o fogão, com suas bocas que não falam mais labaredas. O botijão ao lado, é um gorducho inútil. A dispensa guarda alimentos perecíveis em estado degenerativo. Volto ao quarto só para me deter mais um pouco na cama, de tecido reto, escondendo as curvaturas que os corpos ocasionavam. O aroma de produtos de limpeza, tentam disfarçar os aromas mais íntimos das secreções. Um par de chinelos aguarda para ser arrastado novamente, sobre aquele solo liso, que quando molhado, deixa os caminhantes em estado de alerta. Fotos parecem figuras de enfeite, que só agradam a quem teve o gosto de colocá-los. Vejo uma televisão e um computador, ambos de telas escuras, apagadas, sem nada a revelar. Tomadas pululam pendentes como se negasse os plugues convidativos das paredes que flertam com elas a poucos centímetros. Esse ar me causa náuseas. Apoio as mãos nas paredes, mas escorrego e caio.

Deitado, contemplo o teto. Esse chão de cima que ignoramos por não termos versatilidade de lagartixas. Falta-me ar e cabeça dói. Tudo parece tão calmo, que nem sinto os grãos de vidro que estilhaçados, penetraram minha pele. Sei que sangro, mas não comprovo, prefiro ficar deduzindo sobre o fluxo que se esvai de mim. Imaginando o falecimento, com a risca de giz contornando o corpo, delimitando o espaço em que findei-me. Posso ter me tornado o motivo para esse ambiente voltar a ser intensamente transitado. Embora continue com a sensação de vazio, morto, logo morto sem vazio, ou vazio por completo, a ponto de se fazer morto.