Os espíritos do Natal (inspirado em sir Dickens)
Doutor Charles era um dos mais carrancudos no hospital, as campanhas de solidariedade, conclamando a união das pessoas, deixavam-no mais mal-humorado. Ele questionava a inutilidade de dar falsa esperança a quem já tem o destino decretado. A imagem de crianças entubadas, carecas, algumas sem forças até para respirar, vários óbitos, deixaram-no insensível ao sentimentalismo das pessoas naquelas festas de fim-de-ano. Uma das enfermeiras convida-o para o amigo-oculto do hospital, mas ele desdenha e enxota-a com desaforos. Bate a porta. Pelo interfone informaria se precisasse de alguma coisa.
– Eu não sei porque você ainda insiste, ele jamais viria, muito chato! – a plantonista comenta;
– Fiz a minha parte, quem sabe Papai Noel toca-lhe o coração! – a enfermeira, que se arriscou a convidar o doutor, se justifica.
Cansado pelo expediente extenuante, Charles recosta-se na cama, levanta os pés do chão e resolve tirar um cochilo. Súbito a claridade da porta o desperta. Seus olhos ainda estão embaçados pela sonolência, mas percebe o vulto da criança.
– Quem é você? Quem te deixou sair da cama? Anda, fala logo! – ele trata-a com irritação.
A criança avança em sua direção, dá um salto, aninha-se em seu colo. Ela trazia consigo um livro, um álbum de fotografias.
– Mas o que é isso? – Charles assusta-se com a atitude da criança, mas não repele.
– Você é o Papai Noel? – a voz da criança soa doce e melodiosa.
– O quê? Não, eu sou o dr. Charles, mas... – ele se interrompe, parece imobilizado. Sente seu coração inflamar-se como há muito tempo não sentia. Charles olha para a porta entreaberta, mas um raio de luz partindo do seu colo, do álbum, nubla a visão. As fotos são de sua infância, seus pais, o irmão, seus avós, as festas de Natal, a antiga vizinha por quem Charles havia se apaixonado pela primeira vez, os presentes e a alegria do encontro com os primos. Por um instante ele se esquece de onde está e começa a comentar os momentos de cada foto, algumas lembranças fizeram-no derramar lágrimas.
– Mas quem é você? Onde conseguiu essas fotos?
– Você é o Papai Noel?
– De novo? Já disse que não. Papai Noel não existe!
A criança faz beicinho, ameaça chorar, ela encara-o com firmeza, como se quisesse que ele justificasse a declaração:
– Olha, não adianta tentar me comover. Você não me conhece? Eu não caio nessa palhaçada de Natal e baboseiras infantis!
– Por que?
– Por que? Olhe a sua volta, doenças cruéis. Não acha que encher essas crianças de falsas esperanças seja pior?
– Eu quero o Papai Noel! – a criança aponta uma foto em que Charles e o irmão, estão sentados no colo do Papai Noel. Ele sente um amargor em sua garganta, a foto traz-lhe recordações dolorosas. Toma-lhe o álbum e se levanta.
– Venha, vamos encontrar sua cama! – A criança solta-lhe a mão e desaparece pela porta, Charles persegue-a mas não sabe qual direção a criança tomou.
– O senhor quer ajuda? – a enfermeira do corredor aborda-o.
– Você viu uma criança passar por aqui? – Charles parece confuso.
– Não, não vi. Quem era?
– Como você não percebeu? Passou por aqui agora!
– Vamos ao posto de enfermagem, talvez tenham visto!
Charles acompanha a enfermeira, ele se surpreende com os enfeites, balões, serpentinas, bandeirinhas e uma árvore de Natal, as plantonistas se abraçando e trocando presentes. “Absurdo, ninguém tem respeito por nada!” pensa.
– Ora, não há nada de errado em dividir um pouco a alegria. O doutor tambem foi convidado!
Charles nada responde, ele prefere ficar calado, apenas observando os festejos.
– Olhe aqui doutor! – a enfermeira estende-lhe um vídeo.
As imagens são de festejos natalinos, aos poucos ele reconhece as pessoas. Sua mãe, bem velhinha, sentada em uma poltrona, porém, ela não parecia muito feliz, em volta dela algumas crianças brincavam.
– Co-como você conseguiu essas imagens? Quem é você?
– Sabe o que a sua mãe sente? A sua falta. Ela se orgulha de você, é um ótimo oncologista, entretanto seu ceticismo rouba o que as pessoas têm de melhor!
– O quê?
– Esperança!
– Que esperança? Você, mais do que ninguém, sabe muito bem que não podemos fazer nada. Apenas aliviamos a dor, meu Deus, será que todos enlouqueceram? – sente falta de ar, seu coração está prestes a explodir. Sai correndo, fugindo daquele tormento.
Um velho sentado no chão impede que ele siga adiante.
– Venha meu velho, eu te ajudo! – Charles toma-o pelo braço. – Estranho, você tem o mesmo ferimento que eu! – Charles tateia o homem. Ele nada responde, apenas sorri e pede que olhe pela janela do posto. As imagens são de outras enfermeiras, parecem estar festejando o Natal tambem:
– Ué, quem são essas enfermeiras? Não as conheço! – o velho pede que ele silencie para ouvir o que dizem. “– Graças a Deus aquele velho chato já se foi! – Ah, ele não era tão ruim assim! – Um pé-no-saco!” “– Nossa, de quem será que estão falando? Coitado!” – o velho aponta para outra janela. Uma cama vazia aparece. – Mas o que significa isso? De quem é essa cama? – Charles faz muitas perguntas, mas o velho está sério. Aponta para a placa: “Dr. José Charles”.
– A-aquele leito era meu? Como pode? O que é isso? E-eu morri no Natal? O-onde estão os meus parentes? Eu morrerei sozinho? – o velho olha-o ternamente e chora. Charles percebe que seu estilo de vida isolou-o das pessoas, e fez sofrer até aqueles que o amavam. Ele se reconhece no velho, percebe que é seu choro a apertar-lhe o coração. Um choro, há muito estava preso. O velho sumira e Charles desmaia.
– Doutor? Acorde! – Charles é sacudido, ele abre os olhos, chorando.
– Quem?
– O senhor estava chorando. Ficamos preocupados, está bem? – a enfermeira mostra-se solícita
– Que dia é hoje?
– Natal!
– Graças a Deus! Obrigado Senhor!
Charles quer levantar-se, mas o corpo está amarrado à cama. A doença, provocada pelo remorso de não assistir ao irmão debilitou-o, após tantos anos. Entretanto a vida é mais do que nossas próprias necessidades, é preciso fazer valer a pena.
O Natal ressucitou-o.