PALHAÇOS
Os primeiros raios de sol entram no quarto como invasores, passando pela brecha entre as cortinas e interrompem meu sono. Abro os olhos dando direto com o relógio que já acusava o meu atraso.
São 06h32min; indica o visor digital, o que contando com alguns dias anteriores, somava a quinta vez que chegava depois do horário naquele semestre. Pode não parecer grande coisa, mas em um colégio esnobe como Cláudio de Freitas, podia resultar até mesmo na anulação da minha bolsa de estudo. Algo do qual não podia sequer pensar devido ao duro que minhas mães, Karen e Dayse, tinham que dar pra conseguirem pagar apenas metade da mensalidade daquele lugar. Tudo pensando no melhor pra mim, é claro.
Pulo apressada da cama jogando o cobertor no chão. Em meio ao ato, pego um jeans que havia sido “estrategicamente” deixado embaixo da cama e me encaminho para o banheiro. Saio de lá com a escova de dentes na boca e já vestindo o uniforme, largado na pia ontem, antes do banho.
Calço um par de tênis All Star, sem meias. Paro em frente ao espelho por uns instantes. Assusto-me, primeiro com a situação do meu cabelo, e segundo com o reflexo invertido do relógio, 06h43min. Faço um coque frouxo e saio correndo de casa. Tento chamar o elevador que demora mais do que deveria, então pego a escada. Faço escala no segundo andar para implorar uma carona a um dos vizinhos, amigo da família, que bem sei que trabalha no centro. Ele é gente boa, então topa logo.
Quinze minutos depois, estou na praça mais próxima do meu destino que não o atrasaria no dele. Agradeço fervorosamente ao me despedir e embalo uma corrida desengonçada.
Passado um mercado, uma loja de artesanato, a linha do trem, cá estou na rua atrás do colégio. Corpo inclinado e mãos nos joelhos, recuperando o fôlego antes de entrar no prédio. Levanto a cabeça e dou de cara com eles, os malditos palhaços, sete deles, sete malditos bonecos.
Algum dos alunos criou essa lenda tosca sobre a casa cujo muro faz ligação com o da escola e que em seu quintal havia a maior bagunça com gnomos de jardim, estatuetas de animais, brinquedos velhos ou quebrados, diversas fotografias descoradas pela luz do sol. Tinha até mesmo uma pintura enorme de um palhaço de cabelos verdes que trazia em seu colo uma linda criancinha loira. Era a coisa mais macabra que já tinha visto.
Enfim, a piada interna e de muitíssimo mau gosto que circulava nos corredores do Cláudio de Freitas. Diziam que os tais palhaços colocados recentemente no final da rua funcionavam como espiões, ficavam de olho nos adolescentes que iam e vinham da aula. Ouvindo o que diziam. Aqueles que chamavam de louca ou faziam comentários maldosos sobre a dona da casa, eram pegos quando sozinhos e acabavam por virar parte dos sinistros enfeites do seu quintal ou, simplesmente eram devorados vivos.
Sendo a história fantasiosa ou não, é inegável que seus olhares sórdidos eram realmente assustadores. Apesar de um leve frio na barriga, coloco meu ceticismo em prática e sigo em frente.
Cruzo os portões feliz com meu recorde de dez minutos quando ouço uma risada vindo pelas minhas costas. Um som distante como um eco, apesar da proximidade. Viro-me para a rua deserta, sobrancelhas arqueadas e a boca aberta em uma exclamação de surpresa ao me deparar com nada. Balanço a cabeça como quem acorda de um devaneio e sigo para a sala.
O dia passa devagar e, a cada segundo, o relógio parece fazer hora extra. O sono me alcança já na primeira aula, História. Na aula de Artes, desenho flores. Dois tempos de Geografia e lá se foi a manhã. À tarde tem Português e Física. Meus neurônios fritam durante os sessenta minutos de Matemática.
Somos liberados sempre às 17h30 min, mas pego detenção por não ter feito o dever de casa. Gasto ainda mais tempo no laboratório de informática fazendo um trabalho que é para dia seguinte. Quando o acabo é por volta de 19h.
Junto os materiais e saio novamente pelo portão dos fundos, cabeça cheia de um dia longo. Reviro a mochila em busca dos meus fones de ouvido, não os encontro, então penso em voltar para procura-los, quando ouço novamente o som estranho que ouvira mais cedo. Risadas frias e distantes, porém bem no meu ouvido. Sinto um calafrio me subindo pela espinha, salto assustada e olho para o muro. Os palhaços permanecem estáticos em seus lugares me encarando de volta como se debochassem do fato de eu estar com medo de meros bonecos.
Estaria eu delirando ou haveria mesmo um sorriso malicioso em seus rostos pintados? Volto a andar indiferente à sensação de estar sendo observada. “Hi Hi Hi” soam mais uma vez as risadas . Viro-me para vê-los estáticos, exatamente como minutos antes.
Uma sombra corta minha visão periférica, algo grande atravessa o jardim. Na penumbra, meus olhos encontram a moldura da pintura do palhaço, que agora está vazia. Ao meu redor as risadas se intensificam, vindas de todos os lados.
No chão, os bonecos ganham vida e formam um círculo à minha volta, rindo cada vez mais alto e estridente. A uns 13 metros de distância, bem em frente ao portão, está o mais aterrorizante dos monstros ali presente. Ele, o palhaço da pintura cuja moldura pende vazia na parede. Sem o menor sinal da criança ou do palhaço, agora ali parado em meio às estatuetas do jardim.
Meu coração dá cambalhotas dentro do peito. “A criança, preciso encontrar a criança”, penso em meio à tempestade que se forma em minha mente e estômago.
Vasculho o jardim com olhos apressados, várias vezes até encontrar seu corpo largado em uma pequena área livre daquele monstruoso cemitério de bonecos, entre a pequena fonte e a Branca de Neve cercada de seus horríveis anões. Deitada de lado em uma poça de sangue, seu cabelo dourado tapando-lhe o rosto angelical.
Os olhos do palhaço brilham como brasas. Ele dá um sorriso com presas de tigre antes de sacar um machado das costas e partir pra cima de mim. Seguindo-o, o séquito maldito de bonecos deformados. Alguns sem um braço, outros sem uma perna, outro com apenas metade do rosto. A mulher namoradeira, aquela da janela, montada num cavalo sem olhos. Falta somente a própria figura da morte e sua inseparável foice.
Fecho o caderno sobre a escrivaninha, apago a luz de mesa e guardo as folhas em branco na pasta. Minha redação de terror já estava pronta para a aula de Literatura.
É noite, atravesso o portão de saída da escola. Rua fria, vazia, sem vida. Olho para o canto do muro e vejo pequenos olhos vermelhos brilhando. Apresso o passo e não olho para trás.

MATEUS SOUZA DE OLIVEIRA - 2º C - 2019
Escola Estadual Abílio Machado (Polivalente)
Enviado por Escola Estadual Abílio Machado (Polivalente) em 09/09/2019
Reeditado em 09/09/2019
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