Ao Alvorecer
As velas apagaram-se. As portas do guarda-roupas bateram-se. A janela de duas folhas cerrou-se. A sapateira encolheu-se. O show do Roberto Carlos foi interrompido. Tudo emudecera no quarto: tanto o falante criado-mudo, quanto o vozerio taparam a boca. O momento pedia reflexão e silêncio; o que foi prontamente atendido pelo carrossel de maritacas e bem-te-vis que voavam por ali diariamente. Não havia mais motivos para o regozijo matinal, pois o alimentador de pássaros estava limpo a tal ponto, que uma semente de mostarda seria um banquete. As flores no pé de ipê?
Essas, minguaram da noite para o dia; salpicando uma enorme circunferência florida ao redor das tronco, cujas raízes davam nítidos sinais de secura. Por elas, a seiva pouco respondia aos mandos biológicos e menos ainda, à circulação fluídica da vida. Por tal atitude desmedida, o céu descia à terra e folhas tendendo ao amarelecido despencavam da copa. Uma após outra, davam adeus às alturas.
A tinta no tinteiro mirava a folha de papel em branco sobre a mesa. Ao lado, esparramados sobre a cama, duas mãos juntavam os miolos ainda fumegantes sobre a cama. Enquanto que fora da casa, lágrimas desprendiam do telhado e ao ouvir a leitura da carta de alforria, os animais de estimação saíram alucinados e em disparada ru`afora procurando um novo lar. Para eles, nada mais fazia sentido.
Um vizinho deficiente visual que acompanhava o alarido da janela de sua casa, bateu a bengala contra ao batente e ao notar certo silêncio reticente, perguntou aos presentes: "alguém poderia me dizer o que se passa aí embaixo, parece-me que, enquanto a paz seguiu os passos desesperados dos animais, a liberdade e a luz chegaram para todos os homens?"
E todos, ao invés de responder à pergunta, fizeram o sinal da cruz; pois, diante da estranheza daquilo que os olhos presenciam, não há palavras plausíveis que testemunhem o explicável. Tudo que acontecera era mais do que evidente. Previsível, como as altas temperaturas estudas por cientistas e doutos.
Já não existia mais alvorecer e quando as luzes do sol se acenderam para comemorar mais um feriado, mais um dia de festa, um vulto branco enrolou-se num mar de flores. Acenou o adeus, abriu as asas e rumou sentido o ocaso.
Seguida a rotina, ainda assim, demorou um bocado para os dias perderem a palidez e desfraldarem a pura felicidade, que eram. Em contrapartida, na contramão da via, não há tristeza e lágrimas chorosas que estacionam na pista mais que um instante; ao contrário, carros enguiçados são retirados imediatamente, afinal, prioridade para a fluidez da vida. Porém, os pessimistas dizem com certeza, afirmam plenamente que os espinhos estão para as rosas, assim como os pregos estão para as estradas.
Logo-logo, em breve, para a felicidade e encanto de novos alvoreceres, pneus em franca rodagem serão espetados pelos pregos, principiantes e longevas rosas desabrocharão para o declínio, para o fim proporcionado pelos pontiagudos e venenosos espinhos; e óbvio, numa casa qualquer, as luzes serão despertadas para o dia com o alvoroço de coisas que ainda são incompreendidas pela serenidade dos deuses. Afinal, a racionalidade dos hipócritas não podem ser mensuradas e sopradas ao vento por palavras plausíveis e que testemunhem o explicável. E quando isso ocorrer, como não deixará de ser, as paredes, as portas, a medrosa estrela e a lua solitária em fase minguante observarão o acontecimento embasbacadas. No entanto, os lobos darão sinal... e em cada uivo, um acontecimento. O difícil é saber quantos lobos darão sinal... pois, em certos casos, em cada casa, um alvorecer... cristão, ou não. Parafraseando o dito popular: "um raio de sol para cada uma ao nascer da aurora". Aguardemos!