O ENTERRO ERA MEU
Passava de meia tarde, mas o dia continuava lindo. Sol de verão. Eu estava de pé, parado, a contemplar a cidade, já que me encontrava numa das partes mais altas. Na rua principal, lá em baixo, uma multidão caminhava lentamente. A princípio tive a impressão de que era uma procissão. Não me interessei muito, já que não sou religioso e pensei em me afastar. Alguma coisa, porém, me atraía lá para baixo. Relutei o quanto pude, briguei comigo mesmo, disse que não desceria, mas a atração era irresistível e para lá fui escorregando, meio que arrastado. Quando já numa distância razoavelmente próxima, percebi que não se tratava de um ato religioso. Mas era uma grande multidão, em que algumas pessoas seguiam absolutamente silenciosas, enquanto outras choravam.
Era um cortejo fúnebre.
“Aí deve estar sendo levada para o mundo dos pés-juntos uma figura importante, pensei, a julgar pelo grande número daqueles que a seguem”. Ato contínuo, um frio cortante percorreu-me a espinha e me arrepiei todo. No entanto aproximei-me, agora voluntariamente, porque meu interesse fora atraído. Queria saber quem era o infeliz. Dei mais um passo e estaquei, paralisado, literalmente. Era eu! Isso mesmo, o morto era eu! Não conseguia ver dentro do caixão, mas sabia, tinha certeza, o enterro era meu, sentia isso com a maior convicção, meu corpo estava lá. As pessoas choravam por mim.
Meu Deus, que confusão era aquela? Meu corpo lá, dentro de um caixão de defunto, sendo carregado e eu ali, assistindo tudo, bem vivo. Mas, será que estava vivo mesmo? Me apalpei, para dissipar qualquer dúvida e constatei, aliviado, que estava vivo, com certeza. Além do mais, não passava de um simples mortal. Se morresse, jamais atrairia a atenção de tanta gente. Alguma coisa não estava certa naquela história, sem contar que não conhecia sequer uma daquelas pessoas, vestidas com roupas estranhas, de outra época; aliás, nem conseguia visualizar seus rostos, portanto não as conhecia, disso tinha certeza.
Como explicar? Melhor, como entender? Uma pessoa pode ser duas ao mesmo tempo? Eu poderia estar simultaneamente em duas dimensões, vivo numa e morto na outra?
Embora aquele turbilhão me agitasse os neurônios, segui acompanhando o cortejo, mais à margem, quem sabe alguma coisa, de repente, me fizesse entender o enigma.
Alguém tocou meu braço e já não estava mais lá. Sacudi a cabeça, abri e fechei os olhos e nada de enterro. Apenas o entusiasmado palestrante lá na frente falando e a plateia, da qual eu fazia parte, em silêncio, assistindo.
Tenho certeza plena de que não dormira durante a palestra, posto tratar-se de assunto altamente relevante, de meu particular interesse, apenas fora sugado compulsoriamente para uma estranha viagem, de poucos segundos; o suficiente, todavia, para que dela retornasse portando na bagagem um intrincado problema.
Em razão do acontecido, durante algum tempo andei meio perdido, em busca de resposta. Hoje, não obstante o quadro continue a fazer parte de minhas lembranças, já não me incomoda.