Pistolagem
PISTOLAGEM
Moura Lima
O rela-bucho avançava na noite profunda. O sanfoneiro gorozado puxava com vontade o fole da oito-baixos, que roncava fanhosa ao som do baião. De repente, introduz um toque de pistão no meio da furzaca. Delírio geral:
- Deodato é um gênio!...
Mas aquele arranjo era apenas um enfeite, não tinha nada de ritmo musical ordenado.Era simplesmente uma anarquia musical, pois o esperto e péssimo músico sabia da santa ignorância dos convivas.
O bodum dos sobacos subia misturado com a poeira do arrasta-pé e o bafo quente de fogão lenhado. As mulheres e as moças dançavam com os vestidos colados, que podiam se torcer. A sanfona chiava num som cavernoso.
Um vulto vestido de preto, em atitudes enigmáticas, circulava entre as pessoas, e, aqui, acolá, cochichava a senha combinada:
- Eu estou recolhendo o dízimo da promessa...
E a pessoa, à sorrelfa, saía desconfiada e as oculta, depositava o vil dinheiro do pacto de morte. E no final da coleta, o vulto misterioso se retirou, sem ser notado, e seguiu pela avenida Bernardo Sayão, dobrando logo em baixo, na rua do Cachimbo.E a poucos passos, parou, sondou o breu da noite, olhou à esquerda e à direita, sentindo-se seguro, entrou lépido na tapera da faveira. Do fundo da velha casa em ruína, uma voz se fez ouvir:
-Recolheu todo o dízimo?
- Sim, todo mundo contribuiu.
E, ato contínuo, colocou em riba da mesa tosca o pacote de dinheiro. O chefão do sindicato do crime, que ora nascia, com as mãos trêmulas começou a contar as notas. O foco de luz da candeia refletia o semblante da súcia criminosa, tornando-os carrancudos e satânicos. Ao término, o chefe do bando reiterou raivoso:
-Vancê, Dr. Fume, vai entregar o dinheiro, isto é, deixá-lo melhor dizendo, debaixo do pé de faveira, rente ao tronco rugoso.Não olhe para lado nenhum, pois o cabra vai estar por perto. Apenas diz:
-Estou deixando o dízimo da promessa!...
E volta imediatamente.E tudo isso é para a nossa segurança.É a velha história, ninguém viu, ninguém sabe de nada.
E o homem lá se foi na noite escura, pisando firme pelo gorgulho. De acordo com a ordem, deixou a encomenda sinistra no pé de faveira, e retirou-se na mesma batida. E os mandantes, ocultos pela noite, pouco depois viram um foco de lanterna riscando o pé da faveira. O chefão, satisfeito, disse:
-O cabra é bom de trato, daqui a pouco o negrinho abusado, incentivador de invasão de terras, morre!...
O homem eleito para morrer havia se tornado inimigo dos grandes da terra era um balaio imenso de intrigas, que iria explodir no chumbo quente e na friagem de um cadáver. O infeliz havia pisado no rabo da morte. E do seu lado só ficaram os pobres e humildes sertanejos, os excluídos.
E o cabra-pistoleiro, rápido, entrou na avenida Bernardo Sayão, e foi subindo, ao foco da luz de lanterna.Cães vira-latas ladravam na vagabundagem. A cidade preparava-se para dormir. Pelo espaço pairavam vibrações de morte. Os passos do homem tiniam no chão duro.Logo avistou o foco de luz, na casa do homem marcado para morrer, no final do largo da igrejinha de Santo Antônio.Por precaução, fechou o foco da lanterna e caminhou no escuro. Assim que chegou à porta da casa, avistou o homem da encomenda macabra, de pé, tentando sintonizar no rádio à pilha a Voz do Brasil.E apenas virou-se, para responder a voz que vinha das trevas:
-Quem é Chiquinho Santana?
-Sou eu!
E foi a sua última palavra na terra.E os tiros reboaram ritmados:
- Têi!...têi!...
E o prefeito caiu morto.O cabra-pistoleiro saiu no passo apressado, rua acima.Daí a pouco, uma voz cortou a escuridão:
- Mataram CHIQUINHO Santana!...Acode gente!...
Uma beata abriu a janela e esgoelou na escuridão:
-Eu vi o homem correndo.Pega o assassino!...
Logo toda a cidade tomou conhecimento do crime brutal.Foi um corre-corre dos diabos.Preparação do velório.Sentinela, vela queimando, choro e resmungos.
E na manhã do segundo dia do ocorrido, deu-se o sepultamento, que contou com um grande número dos pobres e humildes da cidade, pois os grandes, se justificaram, em razão de rixas com a vítma, se comparecessem estariam se comprometendo com o assassinato. O Manuel Benício, que criava um bode de estimação, saiu apressado para alcançar o enterro.E o seu bode emendou na carreira. E aquilo deu um tom triste ao enterro, com o bode berrando atrás:
- Bééé!...Bééé!...Bééé!..