AZEITONADOS - A DANÇA DA RESISTÊNCIA
A pele tinha o tom queimado do Sol, como o tom de algumas azeitonas, que são levemente amorenadas. O sotaque indiano se embaralhava com o idioma britânico. A cabeça se curvava aos brancos, apenas por cuidado não por submissão, embora assim fizesse parecer, o ano era 1946, Gandhi era quase um Deus, a sua frase motivava a transformação 'seja a mudança que você quer ver no mundo', só que os inimigos eram muitos.
O bigode cultivado e untado, lhe conferia um certo poder, os olhos negros e grandes, tornavam o olhar marcante. A cabeleira negra, ficava escondida sob o murban, de cor única, muitas das vezes de cores vivas. Praticante do hinduísmo, vinha de uma casta inferior, os Vaishyas e, as suas chances de sucesso eram bem pequenas. Mas, perseverança e o orgulho, eram natos nele. Manu era o seu nome e que significava sábio, pensamento, Deus está conosco...rapaz forte, bonito e determinado, filho mais velho d'uma família de onze pessoas, único varão de seus já bem idosos pais. Precisava se firmar na vida, pois seria o responsável por arrumar bons casamentos para as suas oito irmãs, mas, crer em milagres é uma característica do cristianismo, só que uma jovem rebelde, cuja beleza vinha da alma tinha traços marcantes, rica e solidária de nome Ananya, que significava única, incomparável, ela pertencente à casta superior dos Brâmanes, mudou radicalmente a vida dele.
Henry um inglês cruel, ácido, frio e rico, daquele tipo que todos os indianos, à sua passagem baixavam os olhos e, muitos faziam até reverências, exceto Manu, que ao se cruzarem na praça central em Délhi, o fitou dentro dos olhos dele...seguindo o seu caminho. Henry não deixou a ofensa do azeitonado passar despercebida, chamando um guarda, fez com que Manu lhe pedisse desculpas, o que só foi concretizado, depois que o guarda chicoteou Manu algumas vezes. O inglês e o guarda continuaram os seus caminhos atravessando a praça e, o jovem Manu, ficou estatelado no chão, remoendo um ódio silencioso, com dores, mas, sem uma lágrima sequer. Foi quando o milagre se iniciou. A mão forte de um outro rapaz, bem mais novo do que ele, o ampara para que pudesse se levantar. Assim que apruma o corpo, o seu olhar se cruza com os olhos de Ananya, que também o amparando, fala docemente
- Mantenha a cabeça baixa e nos siga
Sem muito pensar, Manu apenas seguiu a dupla, até uma viela, onde ao passar por um portão em forma de arco, adentraram num cômodo bem grande, com iluminação à velas; onde outras pessoas azeitonadas de todas as castas, brancos ingleses e mesmo outros estrangeiros, já estavam por lá. Algumas sendo alimentadas, outras sendo cuidadas, tal como começaram a fazer com ele, sobre um tapete com almofada.
Manu, não estava entendendo bem o que estava acontecendo, mas, o cuidado que estava recebendo desarmou as suas defesas, simplesmente deixou-se embarcar no alívio que sentia.
A sensação provocada pelos unguentos e chá, o fizeram adormecer. Quando despertou meio assustado, viu a moça, que descobriu que se chamava Ananya, chegando com uma chávena fumegante para ele, Manu aceitou sem reservas embora a boca, estivesse cheia de perguntas. Mais uma vez, adormeceu, por três dias foi assim e, quando abriu os olhos depois de tanto entorpecimento, sentou-se e olhou ao redor.
Agora existiam mais pessoas no lugar, indianos e ingleses, todos juntos olhos nos olhos, como se iguais fossem, sem que os indianos baixassem os olhos. Manu não estava entendendo nada, mas, a vida seria muito melhor se todos agissem assim, com respeito por todos os seus semelhantes. O menino que acompanhava Ananya, quando fora socorrido, perguntou como ele estava se sentindo, Manu confirmou agradecendo que estava bem, ele lhe trouxe naan (pão indiano) , chá e um prato com peixe e feijão bem cheiroso, o que lhe fez muito bem, estava realmente faminto. O menino ou melhor dizendo, o jovem rapaz, se apresentou como Kabir, que significava O Grande e o nome de Manu, ele já sabia.
Manu, entre um naco de pão e outro, perguntou onde estava e, Kabir respondeu, que era um local de liberdade, onde todos eram iguais. Local dos rebeldes de Délhi, onde se podia falar abertamente sobre tudo, sendo um azeitonado indiano de qualquer casta, inglês ou outro estrangeiro, fosse da nobreza ou pessoa comum, as palavras de Gandhi ali na resistência, ecoavam febrilmente e, dali também eram reverberadas. Ali onde todos tinha respeito por sua fala, a PAZ ERA PRIMORDIAL. Naquele espaço, tudo funcionava como numa dança coreografada, onde cada um sabia a sua parte.
A pergunta que não calava na mente de Manu, era sobre a segurança. O que foi respondido por Ananya que chegou em seguida, não...não era totalmente seguro, ela respondeu, mas, com tantos jovens ingleses nobres e indianos de castas superiores, além de outros estrangeiros apoiando a causa, tinham relativa segurança. Ainda não haviam sido descobertos e, já estavam ali há três anos, ajudando como podiam. Manu achou aquilo tudo incrível e queria fazer parte do movimento. Os olhos de Ananya e Manu, se cruzaram até dentro dos seus corações, mesmo que eles ainda não soubessem disso. Só que Kabir, percebeu o ar adocicado no ar, em sua mente ele já tinha um cunhado, um novo irmão.
Manu se deu conta, que a sua família deveria estar desesperada, com o sumiço dele por três dias, precisava voltar. Sua mãe já deveria estar com os dedos retorcidos de tanto rezar, imaginando os horrores que os ingleses teriam feito ao filho, o seu único varão poderia estar morto. Manu precisava correr, agradeceu, se despediu e partiu, sob os olhares solidários de Kabir e Ananya.
A chegada de Manu ao seu vilarejo foi uma festa e, também uma choradeira imensa, como de hábito numa família indiana, mas, o bem estar dele aplacou a preocupação. Precisava refletir o que faria dali em diante. Reuniu no dia seguinte, um grupo de homens e jovens e lhes contou o que acontecera com ele, mas, guardou para si a localização, pois alguns indianos por dinheiro, vendiam informações aos britânicos. Todo mundo ali queria paz e liberdade, a voz de Gandhi ecoava dentro dos seus corações, corria vontade em suas veias, mas, muitos não tinham coragem para se rebelar, embora fossem mais numerosos do que os seus opressores. Falta de coragem e a certeza que sem armas eram inferiores, certos que apenas a PALAVRA de Gandhi e o VERBO pacífico dele, não os salvaria, seguiam engessados em seus anseios. Faltava-lhes um líder, alguém que os empurrasse até mesmo contra os seus temores.
Forçando a partida dos pais e irmãs para um país fronteiríço, Manu tomou para si a liderança da resistência. Buscou orientação de Ananya e de outros rebeldes e, conseguiram invadir o palácio do governo, sob muitas perdas é verdade, mas, a sua louca investida formou um levante violento de centenas de indianos, o que forçou a fuga dos ingleses. Por outro lado, Gandhi com o seu VERBO PACÍFICO, logrou vitória e em 1947 a Índia se tornou independente, não foi fácil, muitas vidas foram perdidas no caminho, inclusive a de Gandhi, assassinado por um hinduísta fanático em 30 de Janeiro de 1948. Ananya e Manu sobreviveram e muito contribuíram para a formação da grande nação, mas, o menino Bakir não teve o mesmo fim, a comoção de sua partida quase salgou o Rio Ganges.
Não foi fácil à união de Ananya e Manu, por causa das castas. Por um longo tempo juntaram-se à família de Manu em outro País, até constituírem família e casarem as irmãs de Manu, sem abandonar a sua fé, mas, esquecendo a divisão de castas, que os segregava.
Retornaram muitas vezes à India, como visitantes. O amor venceu, naquela época a Índia se saiu vitoriosa. Anos muitos se passaram e novos historiadores foram atualizando as novidades daquele povo crescente.
* Utilizei datas reais e, alguns fatos semelhantes aos reais, ao escrever o conto.