O marinheiro bêbado ou a ausência do dilema
O regime da viagem era de cruzeiro, dominó jogavam o médico de bordo e os enfermeiros na enfermaria. Recentemente, dois dias precisamente anteriores ao soco (viagem de curta duração) no mar, vistoria feita nos escaninhos, nenhum gato ou bebida encontrados escondidos pela marujada. O enfermeiro Beraldo, num dia sortudo, em dupla com o segundo enfermeiro, Arthur, já tinham ganhado duas partidas de três, o jogo era melhor de cinco, e o tenente intendente fazia dupla com o doc.
Entra, cambaleante suado, o cabo artilheiro recém-promovido Souza, chegou paciente, diz o intendente Hilário, com licença, hoje não ganhamos nada ainda, vou sair, volto depois do rancho para terminar a melhor de cinco; mal sai hilário, Souza encosta o nariz do médico, grita, grita, grita:
- Você é um merda, merda, merda, vou lhe cobrir de porrada.
Os enfermeiros contêm Souza pelos braços, espontânea queda sendo evitada; antes de nova investida:
- Um bosta, bosta, bosta! Vou quebrar a sua cara de bosta!
- Se me bater, vou reagir, e, do jeito que está, vai ser pior para você. Enfermeiros, soro glicosado na veia do cabo, e repouso.
Parece se acalmar o Souza. Vinte minutos para respirar normal.
- Posso ir para a coberta, doc?
- Pode, não vai fazer besteira?
- Não.
Doze minutos de paz.
- Tenente Balner, tenente Balner, o cabo Souza está quebrando tudo lá na coberta.
- Vou lá!...
Lá, seguro pelos braços todos da maruja que estavam lá, Souza se debatia em grunhidos vindos das vinhas da ira.
- Larguem-no. Venha comigo, Souza, para a enfermaria.
Souza, solto, segue o doc de volta à enfermaria do contra torpedeiro Mato Grosso. Retido para tratamento, é liberado para dormir na sua maca às dez e meia da noite.
Conversação com o comandante.
- Chefe, o Souza tomou um pifão à bordo, teve que ser contido por outros praças na coberta, coisa da juventude, eu mesmo já tomei pifão num caminhão de asneiras. Acho que uma conversa resolve...
- Mas faça a parte de ocorrência com todos os agravos, disse o comandante César. – abrindo sorriso sob o seu bigode cinza cor do casco da nave.
À tarde, Souza vai a audiência, nenhuma punição cai sobre os seus ombros, nem uma advertência lançada em sua caderneta, sai do camarote do comando, anda pelos convés aberto sobre o mar de calmaria. No portaló adentra, encontra o capitão-médico Balner, o nome dele é Stanislaw Balner. Inventam que as letras do sobrenome dele foram extraídas da palavra balneário. Curtição. O sobrenome é suíço, como o sobrenome Daflon, Vermelinger, entre outros tantos de famílias suíças que vieram fundar Friburgo na época da miséria e da fome.
- Doc, capitão, doutor Balner, enquanto eu souber que existem oficiais como o comandante César e o senhor, desculpas; eu juro: nunca mais vou beber em serviço.
- Obrigado, Souza, leve essa ideia para outros navios em que você servir ou comissões futuros.
Que dilema, que nada! Balner poderia ter sido apenas militar, e, sem dúvida, não oferecer atenuantes na parte de ocorrência. Medico, antes de ser militar; militar porque médico; nunca, nele, o dilema entre ser mais militar do que médico se fardou de acontecimento.