O cão andava distraído pelas ruas daquela capital, até que certa manhã viu ali a rosa, bela e solitária, vermelha, exuberante, na sua pureza total. Lembrou então o cão de ter ouvido algum humano falar do perfume daquela flor, de serem elas donas de uma formosura única, singular; ouvira também nos gritos de algum poeta altivo dizer que as rosas significavam o mais puro amor, o ódio e a dor. Mas, como pode – perguntou-se o cão – alguém tão belo significar dor? Achou bom então aproximar-se dela, devagar, no seu trote matinal, calmo e despreocupado, no simples objetivo de cheira-la. Bastaria senti-la, formosa, vermelha – rosa, para saber em seu interior da tal dor.
Ela – a rosa – que ali estava naquela ensolarada manhã – como em tantas outras – banhando-se toda nos raios do Sol, sentindo com aquela luz intensa o fortalecer de suas pétalas, das raízes todas que a mantinham naquele estado de graça, plantada num vaso de porcelana, branco, reluzente, importado da China – diziam.
E, de tão distraída em sua feliz beleza, nem de longe percebera a aproximação do cão que chegara o mais perto possível dela, encostando o seu frio focinho naquela bela criatura à sua frente. Do susto que tomou ela, mexera-se toda em sua forma unicolor exalando o perfume que lhe era típico, porém, numa dose alta e embriagante, demais para os sentidos do pobre cão que, num espirro imediato, cuspira-lhe meia dúzia de lágrimas caninas e dois latidos ao ouvido.
A rosa impaciente com aquilo dissera-lhe logo em alta voz:
- Que nojo! Não tens educação infeliz!? Como ousas molhar-me toda com esse liquido mal cheiroso?
Mas o cão nada entendera e apenas latia, ameaçando a elegante rosa, numa boca entreaberta e cheia de dentes – afilados todos – dispostos a mordê-la.
E a flor, insatisfeita ainda com a situação, seguia em seu sermão dizendo-lhe:
- Tolo imbecil, ignorante, então não vés que numa flor como eu não se cospe! Não se late, nem se bate? Sou da nobreza, da beleza do mundo, sou do universo, de Deus criador de todas as coisas. E dizendo isto aproveitou a rosa uma forte passada do vento e devolveu-lhe a cusparada numa boa sacudida.
O cão não gostou nada de ter todo aquele respingo caindo no seu focinho, tendo ainda fechado os olhos miúdos para evitar o pior. Pois logo posicionou-se como numa batalha e de uma só alçada desferiu uma rápida mordida no talo da bela rosa. Porém, qual não foi a surpresa do animal ao sentir ele dor maior naquela investida, não sabia o cão dos espinhos grandes e pontudos que têm as rosas, e foi justo um desses danados que lhe espetou a língua – carnuda e macia – agora, ferida doida a saltitar boca adentro, na tentativa frustrante de livrar-se do espinho invasor. Ferido que estava foi-se o cão, lembrando do que ouvira dizer sobre as rosas: eram sim belas, formosas, representantes do amor e também da dor.
Mas, e a rosa, o que foi dela?
Com a mordida daquele dia, nada aprendera, pois, era pouco sabia na sua arrogância diária, mas o golpe fora certeiro, deixando-a quase desfigurada, ainda assim, sentiu-se bela, poderosa e capaz de seduzir a muitos. Com o tempo a imagem daquele ataque se esquecera e no lugar da mordida havia apenas uma cicatriz ficando a rosa, não tão bela quanto antes, curvava-se agora um pouco mais, ora para um lado ora para outro sentindo que poderia ter a quebra do talo, coluna maior que a erguia, em sua postura imponente. Nas manhãs de Sol aproveitava ao máximo a quentura do astro maior na esperança de ter revigorada toda a sua elegância; nas regadas ao fim da tarde, absorvia a rosa cada gota de água que o céu lhe enviava, sentindo-se então melhor ao respirar, mas, quando o vento chegava e forte soprava, sentia ela todas as forças acabarem, pensando consigo mesma que era ali o seu fim. Seu dia havia chegado – pensava a pobre – e morreria, despedaçada ao chão, seria lançada pelos cantos daquela rua, espalhando-se em suas pétalas, já fracas, sem cor, sem vida...
Porém a rosa sobrevivera uma vez mais, mantendo sua forma, suas folhas, quase todas pois, é certo que perdera algumas, doadas ao amigo vento que por ali passara com sua costumeira pressa.
“Na natureza, assim como na vida dos homens, uns aprendem, outros nem tanto e seguem vivendo dia após dia, como si nada tivesse acontecido...”
Allan Kall
Janeiro de 2014
(primeiras palavras)
allan kall
Enviado por allan kall em 24/07/2019
Reeditado em 24/07/2019
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