O Menino branco e o Arco Preto - Aventuras de Leo Rocha
Quando o menino branco completou dezessete anos, voltou pro Xingu. Ele tinha aprendido muita coisa quando foi pela primeira vez, aos onze anos. Na menines ficou seis meses. Seis meses quase todo em reclusão. Não totalmente fechado, um sistema semi aberto. As vezes pescava, saia pro rio, brincava. Mas a maior parte do tempo ficou dentro da grande casa, fechadinho no escuro e no silencio da reclusão. Paru Cacique e índios de varias aldeias, algumas a mais de 500 km de distância, vinham de barco e a pé, pra contar suas histórias pros meninos da reclusão.
Essas histórias nunca lhe saíram da cabeça. Pelo contrário. Ele quase ouvia suas vozes quando agora grande entrava no mato: "Aquela planta, menino, vai procurar aquela planta que eu te ensinei". Reconhecia árvores, folhas, galhos que só conhecia nas historias em cada trilha, caminho, passagem que andava. Descalço, sempre descalço no seu mato. Ele até sonhava na língua.
E voltar ao Xingu agora era uma grande honra para ele. Leonardo percebia essa oportunidade. Estava radiante de felicidade, sentia o Xingu inflamando no peito. E Paru pai sabia, sentia e via Leonardo inquieto. Ele também não queria perder um tiquinho de Leonardo sequer.
Paru então pediu a Muraika Waurá que ensinasse Leonardo a fazer o arco preto. Muraika não gostou muito da missão. Paru sabia dos dons de Leonardo desde que ele veio menino. Paru estava preparando Leonardo. E era chegada a hora de fazer arco preto.
Não só a hora dele, do menino, mas o momento da aldeia. Poucos sabiam fazer tão importante peça. Um pouco mais de tempo....um pouco menos de tradição e o conhecimento de tal raridade estaria extinto. Paru sabia, Paru temia.
Então Muraika deu o pior de seus facões a Leonardo e saíram na pior hora da tarde a procura da madeira. Andaram por horas na mata, com pouca comida. O mestre tentava desanimar Leonardo. Pensava que o menino branco desistiria facinho da missão. Muraika não acreditava em Leonardo. Mas, como Paru pediu, o velho chegou ate a grande árvore.
Rachar a madeira com machado, tirar o brancal, deixar só o cerne e levar a lasca pra aldeia. O Mestre ensinou e foi embora. O menino ficou. Sozinho no mato.
Leonardo pegou o machado e começou a cortar a árvore. Bateu, bateu, bateu. Leonardo cansado, Leonardo suado. Por quase sessenta dias o menino branco trabalhou no mato e percorreu o mesmo caminho até conseguir levar toda a madeira para a aldeia. Um caminho de pântano. Teve um índio que passou por ali e foi atacado por uma sucuri, e viam sempre pegada de onça.
Quando o dia nascia e o menino branco acordava, atravessava o pântano e ia pra sua árvore trabalhar as lascas. As vezes nem comia, esquecia. E trabalhava, trabalhava. O menino branco no arco preto.
No meio da manha voltava pra aldeia e ia mexer com as lascas que já estavam guardadas no rio, escondidas pra nenhum índio achar. As vezes escondia e nem achava mais.... depois procurava ate achar... esconderijo de índio... loca de bicho. Na beira do rio trabalhava com o facão, faca pequena, caco de vidro pra raspar e lixa.
Depois de três quatro meses de dedicação a peça enfim ficou pronta. Leonardo branco não acreditava. Estava satisfeito, estava orgulhoso. Muraika chamou então Leonardo para o último processo. O velho ainda não acreditava em Leonardo. O menino não havia desistido por nada!
Muraika então acendeu uma pequena fogueira, pegou arco de Leonardo e colocou perto do fogo. Aqueceu um lado, virou do outro. Parecia que o mestre assava um peixe. Todo arco preto passa por esse último processo. Se um mínimo corte errado na madeira, logo no começo do trabalho, tivesse sido feito, agora, no fogo, a madeira racharia de fora a fora, como um vidro estilhaçado.
O fogo esquentava a cara de Leonardo, olhando fixo e de perto seu arco enquanto Muraika esperava pela rachadura. Muraika esperou, mas ela não veio. O mestre então olhou para Leonardo branco. Muraika entendeu Leonardo, Muraika entendeu Paru.
No dia seguinte o velho chamou alguns homens no centro da aldeia. Chamou o menino branco e levou o arco preto. Ele falava e pedia pra um índio mais jovem traduzir pro português de Leonardo.
" Muraika não queria ensinar arco preto pra Leonardo. Muraika pensava Leonardo não conseguir. Muraika não podia desrespeitar madeira, desrespeitar arco. Então Muraika deu madeira errada pra Leonardo. Madeira pequena. Pensava Leonardo não vai conseguir. Mas Muraika esta muito feliz. Leonardo conseguiu. Mesmo madeira pequena. Leonardo bom. Muito bom."
O menino branco não sabia se chorava ou se ria. Se corava ou se sumia. Mas todos olharam para ele e mexeram suas cabeças em sinal de entendimento.
Mas no fundo, lá no fundo, Leonardo branco sentiu. Acima do seu orgulho de bom arqueiro que era, ele se sentiu enganado. Não gostou. A mentira lhe feriu como uma flecha que fura e sangra. Foi pra beira do rio. Ficou. Por um bom tempo o menino branco ficou parado, olhando a água se mexendo sabiamente. Voltou pra aldeia, chamou Muraika, encarando-o de outra forma, um pouco mais de igual pra igual e o intimou com todo respeito: "amanha quando o sol ainda estiver nascendo você vai me levar no mato de novo. E vai me mostrar a madeira certa!"
Não sei se o velho entendeu as palavras do português mas ele captou o recado e acenou afirmativamente. Conforme combinado os dois arqueiros saíram no escuro da madrugada e trombaram com o sol nascendo pelo caminho onde estava madeira certa do arco preto. Arvore grande, tronco grosso.
Leonardo caminhava decidido. Pés certeiros no chão, olho semicerrado a procura dos detalhes na mata. Facão na mão, pele queimada, mãos calejadas. O branco mudava de cor, virava Índio!
Da madeira certa Leonardo Rocha não tirou apenas uma lasca para fazer o arco, tirou nove. Recomeçou o trabalho de dois meses novamente, com o mesmo empenho.
Alguns dias antes de terminar o trabalho, várias casas da aldeia pegaram fogo, inclusive a sua. Leonardo perdeu tudo: arco, rede, documento, dinheiro pra voltar pra cidade.
“Eu perdi tudo. Fiquei só com três lascas que estavam dentro do rio, e a minha bagagem passou a ser a roupa que eu tinha no corpo e o facão que eu estava na mão. Mas ai eu vi o tanto que eu era da tribo. Porque no outro dia eu tinha rede, eu tinha cobertor, eu tinha roupa, comida. Eu tinha a mesma coisa que todo mundo tinha e a mesma falta que todo mundo tinha. Ai eu vi o quanto eu estava sendo aceito completamente na tribo.” Leonardo Rocha.
Leonardo Rocha é um dos poucos que ainda detém o conhecimento de fazer o arco preto. Talvez o único. Viveu entre os Yawalapiti em 1987, aos onze anos, e em 1993, aos dezessete.