A Saga de Zé-Rufino
(Samuel da Mata)


 Zé-Rufino, um dos filhos de Dona Benta,  chamava-se de fato: José Belarmindo.  "Rufino" é fruto de uma derivação pejorativa da sua desqualificação para o ingresso no Exército, quando o Sargento Peres o taxou de inapto e timbrou sua carta de registro com a justificativa "indivíduo mofino".  Desde então, seu nome de batismo fora completamente esquecido e até ele mesmo já se intitulava pelo apelido.  

 Na adolescência, sempre dependeu dos amigos para defender seus interesses. Fisicamente desprovido, só uma boa retaguarda poderia  garantir-lhe algum respeito. Todavia, quando sozinho, penava feito burro manco, na mão de seus opressores. Sempre que podia, fugia de uma briga, mesmo sob as vaias e o desprezo dos arruaceiros. Assim cresceu e viveu Zé-Rufino, como sombra apagada em um mundo machista, onde os dotes físicos era sinônimo de nobreza e a opressão e covardia interpretadas com valentia e coragem.

 Na Zona da Mata, onde vivia Rufino, era as vaquejadas e os rodeios que davam aos homens, as suas qualificações de respeito ou inutilidade. Fulano, que segura um Zebu pelos chifres; Cicrano, que foi estrepado na rinha;  Adolfo, que levou um coice na testa; Serafim, que apanhou de vassoura; e frases de mesma natureza.  Rufino vivia assim, passivo e conformado com a sua inadequabilidade ao pódio. Nunca ninguém o imaginara coroado de glórias por qualquer ato de bravura. A vida tem destas coisas, da moita que não se espera é que brotam os coelhos.

 Quando a onça apareceu na Vila, foi um corre-corre só. O padre suspendeu as quermesses, a prefeitura pôs grades de ferro nas janelas e teve até "valentões" que abandonaram a Vila para cuidarem de parentes em outras corrutelas ou sob outro pretexto qualquer. O fato é que o pavor se instalou. Cabra macho, "de garganta", se borrava todo só em pensar em dar de cara com a bicha. Uma fera medonha;  numa semana só comeu as três cabras da Dona Zefinha, matou a novilha do Requião e eliminou oito cachorros.  

Mal o Sol se punha e ela vinha pra Vila semear o terror e o medo. As famílias, trancadas em suas casas, rezaram mais naquela semana do que em todas as novenas  da quaresma e da semana santa. A coisa tava feia, ninguém ousava sair de casa para cuidar da roça. Quem pôde, estocou mantimentos, mas corria a notícia que algumas famílias já passavam fome.

A onça pintava e bordava na Vila, até que cometeu um erro estratégico: Matou a égua do Zé-Rufino. Naquele dia, quando amanheceu, a população se deparou com os restos da égua do Zé-Rufino estraçalhada na praça. Notaram logo um brilho diferente nos olhos do homem. Era algo indescritível à mente humana. Rufino não piscava, não soltava um murmúrio, nenhuma lágrima sequer brotava de seus olhos. Pelo contrário, pareciam chamejar como brasas no borralho.

 Rufino abandonou a praça apressado, nem enterrou os restos dá égua, passou o dia na oficina do Sebastião Ferreiro, construindo um zagaia tridente, daquelas que dizem que o Capeta faz uso no inferno. Ele mesmo fez questão de dar polimento ao ferro.  Ainda maquela tarde foi à casa do Coronel Abelardo onde comprou dele um bacamarte velho, ao qual passou toda a noite dando polimento e preparando-lhe a munição. Alguns achavam que ele ia era suicidar.  Naquela noite a onça ainda comeu um peru e uma leitoa do Sr. Alcides.

 Ao raiar do dia, noticiavam que os guardas da prefeitura, Jerônimo e Alfredo, haviam desertado e fugido da vila devido a promessa do prefeito em organizar uma patrulha de caça à onça com eles. Rufino saiu sozinho e anônimo. Uma zagaia de quase dois metros nas costas, um capanga  cinza nos ombros e o bacamarte de quase um palmo de boca. Ninguém deu fé da jornada, quando deram falta dele acharam que ele tinha fugido ou que  a onça o comera. Rufino seguiu a trilha de sangue e odor da onça até o topo da serra. Lá, à sombra das rochas,  a onça se estirava garbosa como a rainha da morte. 

Ao sentir o cheiro de Rufino, a onça levantou-se rapidamente e veio ao seu encontro num ataque de fúria, como relâmpago em noite de tempestade. Foi quando se ouviu o estrondar do bacamarte enchendo o vale como um trovão. O fogo saiu da boca da arma cuspindo pregos, ferro sal e enxofre  como um grande dragão de ódio. Rufino, que  caíra pelo coice da arma,  levantou-se ligeiro e cravou a zagaia na garganta da onça como um titã mitológico. Ainda com a onça agonizando, a arrastou para a vila, numa cena de loucura e ódio que jamais se vira. Sem uma palavra sequer,  dependurou a onça  na praça e foi lavar-se do sangue. Desde então, Rufino ficou conhecido como o Zé da Onça, eleito e reeleito a prefeito da Vila até  seu ultimo dia de vida, mas sempre  dormindo no couro, esticado e furado de pregos, daquela onça que um dia ousou matar a sua égua.


Moral da estória: "A afronta desperta potencias inertes e fabrica os mais insólitos valentes"
 
Samuel da Mata
Enviado por Samuel da Mata em 26/10/2014
Reeditado em 06/09/2015
Código do texto: T5012910
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