O beijo do Ballet no Tai Chi - conto

I.

Riam, mulheres, riam! Gozem, mulheres, gozem, sem temor. Eu sou uma piada, piada de mau gosto. Jogo com destinos, traço rotas tortuosas e depois finjo surpresa com os reencontros que eu mesma planejei. Faço nascer, faço morrer, e entre esses extremos, encho de ironia o caminho.

Por exemplo, vejam estas duas, perdidas em Curitiba, uma cidade tão fria quanto os olhos de quem passa sem olhar. Saudade Retrouvailles e Saudade Guān Xì. Duas mulheres negras, com mais de trinta e menos de quarenta anos, duas histórias esculpidas na dor. Bailarina e guerreira, cada qual treinada para resistir.

Saudade Retrouvailles, criada por franceses, aprendeu desde cedo que dançar era uma luta contra as próprias limitações. Seus pliés exigiam suor, seus saltos eram voos de fuga, porque a disciplina do balé sempre lhe soou como uma prisão.

Saudade Guān Xì, nascida na precisão do Tai Chi, foi treinada para encontrar a força na suavidade, para controlar tempestades com um giro lento e firme. Mas, por dentro, seu espírito golpeava o vazio, carregando a dor de um lar onde amor era um conceito distante.

Nunca se viram antes. Mas bastou um olhar, e eu soube: essa história valia a pena. Ah, esqueci de me apresentar, quem fez essa maldade com elas, fui eu… E eu sou a vida.

II.

Se querem uma história doce, fechem este conto agora. Eu sou a espreita nos cantos escuros, a que se esconde nos sorrisos forçados. Conheço essas duas melhor do que qualquer um.

Foram criadas em casas ricas, mas em lares vazios. Cresceram rodeadas por objetos de luxo, mas nunca ouviram um "estou orgulhoso de você". Cada excesso material em suas vidas espelhava uma ausência emocional:

Os farnéis no café, no almoço e na janta, equivalia à falta de um "durma bem" antes de fechar os olhos.

Os cobertores e aquecedores que as faziam desconhecer o frio curitibano, era coberto pela falta de um "eu te amo" sussurrado sem pressa.

Tinham títulos que diziam que elas eram tudo, mas a ausência de ancestralidade e pertencimento as fazia questionar à própria existência.

Na desordem do Largo da Ordem, em um evento do coletivo MULHERES QUE AMAM MULHERES, elas se sentaram afastadas no bar, observando. Mas era inevitável. Uma sabia da outra, antes mesmo de se conhecerem. E então, não por acaso, em caso, no caos, as palavras vieram:

"Para lutar, sempre precisei dançar de acordo com as marteladas opressoras do sistema", disse Saudade Guān Xì, seu olhar firme, mas sua voz carregada de memórias. Se comparado a ela, não havia ninguém mais preparada e verdadeira para conectar o físico com o espiritual. Carregando dentro de si as sombras, a dona de um nome que significa “conexão”, golpeava, fortemente, até aço com a mão, mas, suavemente, sangrava seu âmago.

"E eu... para dançar, sempre precisei lutar", respondeu Saudade Retrouvailles, segurando seu copo como se fosse um amuleto, e seu choro com desespero. Na rigidez do ballet encontrou sua sina. Seus saltos, são saltos de fuga, a fuga da disciplina de lutar. Para essa beleza negra de nome que significa “reencontro de pessoas que se encontraram após um período de separação”, está exausta, pois, lutar no palco era sua rotina.

Nestas falas, encontrou beleza?

Ah, eu não me apresentei…

Eu sou a Tristeza.

III.

Elas não disseram que se amavam naquela noite. Apenas compartilharam o calor do toque, as câimbras de suas histórias sendo massageadas por mãos que sabiam exatamente onde doía.

O amor é um sopro, um suspiro que se infiltra entre silêncio e palavra, entre um olhar e um desvio. Ele estava lá quando Saudade Guān Xì ajustou a postura de Saudade Retrouvailles, guiando-a como se conduzisse um movimento de Tai Chi.

Estava lá quando Saudade Retrouvailles ensinou Guān Xì a encontrar o ritmo da música que tocava ao fundo, como se cada batida fosse um passo seguro.

E ao amanhecer, enquanto Curitiba despertava em sua frieza, Saudade Retrouvailles e Saudade Guān Xì se olharam e, pela primeira vez em anos, souberam: o amor não era uma lenda ou apenas um espetáculo. Ele existia.

"Eu nunca soube o que era o amor", sussurrou uma.

"Até você chegar", completou a outra.

E eu? Eu apenas sorri. Eu comecei ali. No reconhecimento. No espelho que cada uma foi para a outra. Eu? Sempre chego por último. A Vida se gaba, a Tristeza destrói. Mas sou eu que colho os pedaços e os transformo em algo eterno. E eu? Ah, eu sou aquilo que toda mulher negra merece.

Eu sou o Amor!

Mago das Palavras e Dra. Shaira Zion
Enviado por Mago das Palavras em 19/02/2025
Código do texto: T8268485
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