ÚLTIMA PÉROLA DA MINHA MÃE
Faltavam exatos quatorze dias para a Páscoa da nossa mãe Emília, quando cheguei à casa dela, na parte da manhã daquele dia de quinta feira, vinte e quatro de fevereiro. Ela sentada na sua cadeira preferida, fazia seus bordados em ponto cruz. Depois montava os panos de pratos com viés, bordado inglês e babadinhos de tecido que compunham sua obra prima. As cores todas na combinação de tons. Para os 88 anos dela, além de ser divertido, era a forma de ocupar seu tempo, manter o cérebro funcionando bem e a coordenação motora também. Posso viver cem anos, que todas as vezes que eu for falar sobre ela, não somente das nossas discussões de mãe e filha mais velha, da qual a mãe sempre é ciumenta, articuladora, cobradora, inventora de mil afazeres domésticos para não deixar sair de casa, não conversar com nenhum rapaz, ainda assim, tenho inúmeras pérolas dessa natureza que pretendo colocar numa obra única das suas memórias póstumas, cuja partida ocorreu no dia nove de março último, às oito horas da manhã, na quinta feira e no mesmo horário em que conversávamos felizes, há quatorze dias atrás.
Depois, as outras filhas ela deixou namorar à vontade. Dona Emília sempre foi uma mãe rígida, inteligente e criativa, mesmo sem ter ido à escola, aprendeu sozinha a ler algumas coisas e escrever outras. Quando jovem, até mais de meio século de vida, enquanto pôde foi grande modista. Suas costuras eram perfeitas. Fazia ternos masculinos e até vestidos de noiva. Claro, que eu fui crescendo e ajudando a ela na criação dos modelitos. Naquele tempo, existia revistas de modelos e moldes que a gente adquiria para que as clientes escolhessem o que desejavam e algumas procuravam até modificar, acrescentar, ou, retirar algo, para que ninguém estivesse de roupa igual, quando fossem à missa.
Com a idade, e, não mais tendo forças para as inúmeras costuras, os modelos complicados e nem ter mais as filhas em casa para ajudá-la, ela foi deixando. Por fim, ficou somente nos paninhos de copa que não davam para quem quisesse. Quando foi embora deixou onze peças prontas.
Assim que a gente chegava à casa dela, era uma felicidade só. Seu riso de orelha à orelha. A primeira coisa que ela dizia depois da bênção que a gente tomava, era se a gente queria tomar café e já ia descrevendo o que teve naquele café da manhã e quais filhos trouxeram o quê. A mesa era sempre cheia.
Depois dos cinquenta anos ela começou e ficar surda, coisa da genética familiar, não escutava nada sem aparelho nos últimos anos. Se estivesse sem eles, corria e ia colocar. Às vezes, a gente esquecia e falava muito alto e ela reclamava, que podia falar mais baixo que ela estava de aparelho. Esse último, ela usava há poucos meses, custaram quinze mil reais e ela pensava que a gente tinha comprado, mas, tinha sido do sogro da minha irmã mais nova, que faleceu ano passado. Nós omitimos isso dela, se não, ela não ia querer usar, por ter pertencido a alguém que já morreu. Caso ela já tenha encontrado com ele, o ex dono dos aparelhos auditivos do lado de lá, decerto, ele já disse: usou com gosto os aparelhos que eram meus, né Dona Emília? E a senhora pensando que os quinze mil tinham saído dos bolsos das suas filhas, mas saíram dos bolsos das minhas e da sua filha casada com meu filho que não deixou de contribuir. Devem ter achado muita graça da nossa enganação.
Eu sempre fui a filha mais rebelde que não ia vê-la todos os dias. Nessa quinta ela estava tão bem e começamos a conversar sobre os netos dela que são meus filhos e também sobre os outros, das outras filhas e noras.
Rimos tanto de lacrimejar os olhos. Nunca imaginei que depois de alguns dias ela já fosse partir.
Para ilustrar o que escrevo a essa hora da manhã, cinco horas e vinte e cinco minutos, quero citar, Renato Russo, que na sua inteligência de poeta magistral escreveu “Monte Castelo” o qual reescrevo com muita honra, bem porque ele fez uma junção de partes da bíblia escritas pelo apóstolo Paulo e partes do soneto de Camões. Perfeição absoluta.
"Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria
É só o amor! É só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidece
O amor é o fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer
Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria
É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder
É um estar-se preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor
É um ter com quem nos mata a lealdade
Tão contrário a si é o mesmo amor."
Fazer essa citação me comove de tal forma que não posso me segurar. Não conheço outra poesia a não ser o monte castelo onde vivíamos com ela. O que seria de nós se não fosse o amor... principalmente o amor de Deus!
Para ter uma mãe assim, tão humilde, tão amorosa e tão solidária, ao ponto de cuidar de todos os netos para as filhas irem bater pernas, a gente conta nos dedos. As avós amam os netos, contudo, não é fácil cuidar de vários ao mesmo tempo.
Depois de todos esses anos, minha irmã mais nova diz que a gente não tinha uma gota de juízo em fazer isso com a nossa mãe, mas, "mamis", nesse dia, deu conta do recado, usou o chinelo, as palmadas, o castigo e tudo ficou bem.
Conheço algumas, tipo eu, que falo com todas as letras:
- Traga a babá, se não, não vou dar conta! Quando vocês retornarem, não saberei como estarão, para começar, não vou fazer almoço. Vou ficar por conta deles e ainda, não garanto nada. Se vocês chegarem e eles estiverem chorando com fome vamos ao restaurante.
Como todos sabemos, os idosos falam das mesmas coisas incontáveis vezes, mas, sobre esse episódio e alguns outros que contarei num próximo livro que será só sobre a vida dela, toda vez eu ouvia com prazer, ria junto por causa do sufoco que ela passou, cuidando de oito crianças, entre três a dez anos de idade. Vou aqui “dar nome aos bois”, para que quando eles forem ler, rirem também e saberem que o que fizeram com a avó, que na época tinha cinquenta e quatro anos, não foi correto. Iniciando pela ordem decrescente e a idade que eles têm hoje: Pablo Henrique, (45 anos), Diogo Ulisses, (42), Giorgio Fernando (41), Dailane (40), Marlon Rodrigo (39), Thailise Renata, 39, Arianne Christine, (38), Vinícius Raphael (38).
Ela, minha mãe, nos afazeres da casa e essas crianças vendo os desenhos da época (Chaves, Sr. Madruga, D. Florinda, Kiko, Chiquinha, Nhonho, Professor Girafales e o Sr. Barriga.
Até então, tudo certo, mas, alguém gritou:
- Vóó! O Pablo tá sufocando o Marlon, corre aqui!
Ela deixou as panelas no fogo e foi ver.
O que viu não tinha como deixar, tinha que agir. Tirou um dos pés de chinelo que calçava e deu-lhe bem no pé do ouvido que o mocinho, imediatamente, deixou o irmão que já estava roxo, dele lhe bater na cara e apertar o pescoço. O porquê dessa violência ninguém nunca soube, se não, a própria mãe desentortava a cara do menino com outra chinelada.
Nisso, os demais correram, uns pularam a janela que era baixinha e bem ampla e nessa tribulação toda, Vinicíus derrubou a priminha em cima de uns tijolos que estavam na calçada. Ela é mais velha três meses que ele, porém, ele bem mais esperto. Ele correu e ficou atrás da parede olhando pelos buracos dos tijolos. que eram feitos de forma que ficasse um vão em cada um, para entrada de ar.
Mamãe, correu lá fora para acudir a menina que gritava de tanta dor. Olhava em todo o corpinho dela e nada achava. Perguntava, mas ela não conseguia dizer, tamanha era a dor sentida e não aparecia quem confessava o mal feito.
As vizinhas todas vieram ver o que tinha acontecido, mas, nenhuma teve a atinência de ir olhar as panelas.
Com muito carinho, mamãe levou-a ao banheiro, porque ela estava toda suada. Despiu-a e pôs numa bacia grande embaixo do chuveiro morno. Quando a menina sentou na bacia gritou de novo, porque a ferida ardeu com a água. Ao cair sobre os tijolos cortou apenas a finíssima pele, entre os grandes e pequenos lábios da vagina. Mamãe quando viu aquilo, quase enlouqueceu. Banhou a menina e foi para o quarto enxugou com muito cuidado e trocou sua roupa. O choro passou e ela dormiu. Não colocou nenhum remédio porque o que tinha era mertiolate, que fazia arder mais ainda. Ai, ela disse que ficou com pena.
E as três filhas e duas das noras na rua, gastando o dinheiro que não tinham, compravam tudo na nota promissória, em seis parcelas. Nessa época não havia cartão, se não fosse no boleto, seria no cheque pré-datado.
Quando tudo estava quase calmo, e os sete de olhos esbugalhados com medo do chinelo, alguém resolveu contar e foi a vez do Vinicius, e, ele também estava molhado de suor de tanto medo do chinelo, mesmo tendo derrubado-a, sem querer. Foi um acidente por causa da correria e o medo dos chinelos da vovó. Enquanto a avó o lavava aproveitou para dar lhe umas boas palmadas, e, botou-o de castigo, sem ver tevê e de boca calada deitado ao lado da prima que dormia. Só sairia do castigo depois do almoço e se comesse tudo sem fazer drama, inclusive o jiló. Com ela era assim, tinha que comer de tudo, sem essa de cara feia, choro, ou, qualquer outra desculpa.
Enquanto ela ia me contando em detalhes até sobre as caras e bocas que as crianças faziam, alguns que já têm os olhos grandes e que ele chamada de "zoiudo" dizia ela que os olhos ficaram ainda maiores, quase saiam das órbitas, tipo os olhos do pica-pau quando vê algo que lhe interessa. Escutando ela narrar daquela forma eu ria demais, tanto pela perfeição e da riqueza minuciosa, quanto dos gestos que ela também fazia. Bom demais. Momentos inesquecíveis!
O almoço à essas alturas, já tinha torrado o arroz e o feijão grudado no fundo e com cheiro de queimado. Precisou jogar no lixo e fazer outro.
As crianças a essa altura, com fome, mas, todo mundo de bico calado, ninguém ousava dizer que a barriga roncava. O frangão caipira se salvou porque era feito cozido ao molho. O caldo acabou secando, mas, não queimou, foi só colocar mais água e ficou tudo bem. A polenta, o jiló e o quiabo já estavam prontos. Lavar as folhas da salada foi mais um castigo ao Pablo, que estava com a orelha pegando fogo, por causa da chinelada, muito bem dada, mas, correu para a pia sem reclamar.
Ela disse que ele demorou tanto, que quando ela terminou de cozinhar outro arroz e temperar outro feijão, foi finalizar a lavação das alfaces, porque o medo dele era de que não ficasse bem lavadas e apanhasse de novo.
Enfim, o almoço ficou pronto.
O meu carro era um fusca, e estava até o teto de tanta sacola. As duas cunhadas e a minha irmã mais nova grávidas e essa foi uma das causa de a gente ter ido às compras. Escolher juntas os enxovais para os chegantes, que apareciam nessa época de surpresa, ninguém comprava nada rosa ou azul, aqui ainda não existia ultrassom que determinasse o sexo com exatidão. Chegamos em casa, assistimos a todo aquele silêncio, sem acreditar que nenhuma criança fazia bagunça. Sem contar que eles arrumaram as almofadas no seu devido lugar, cada qual tomou seu banho e a televisão desligada. Aquilo era um milagre.
Nesse dia, ela não contou nada a gente sobre o ocorrido, muito menos sobre ter queimado parte da comida, por causa da desavença dos meus filhos. Acho que a alegria de ver as coisinhas que a gente comprou para a família inteira, inclusive para ela e nosso pai e pela compra de guloseimas de mercado, que na casa dela era uma raridade ter. Trouxemos também, refrigerantes e sorvetes. Almoço de rico. Por causa do refrigerante, as crianças comeram os legumes e a salada sem reclamar.
Esse foi o papo mais gostoso que nós duas levamos antes que ela fosse embora.
Queria ter podido conversar muito mais sobre esse mesmo episódio, embora já tivéssemos conversado por milhares de vezes sobre tantas coisas que nos faziam rir, queria que tivéssemos conversado de novo e de novo, até a sua hora derradeira, mas, é como disse Renato, não falamos a língua dos anjos, estamos aqui para servir a quem vence, e o vencedor é Deus, que nos ama imensamente, encoraja, fortalece, acolhe, abraça, fala aos nossos ouvidos que tudo vai ficar bem. O que seria de nós sem esse amor?! Certamente, nada seríamos e foi por causa desse amor e desse cuidado que Deus tinha para com Dona Emília, que fez dela mãe, avó e bisavó. Se dentre todos esses cuidados não prevalecesse a sua divina vontade, e ela tivesse demorado mais um pouquinho aqui, quem sabe, eu virava bisavó e ela tetravó.
Só o amor conhece a verdade, somente ele sabe de todas as coisas, não mata a lealdade, não se envaidece, perdoa sempre. É fogo que arde e não se sente, é uma prisão que todos querem estar nela e por fim é uma ferida que dói tão dolorosamente, que a gente fica entorpecido, e, é nessa hora que Deus põe a gente no seu colo e alivia nossa dor, porque ele é puro e infinito amor, amor imortal, sem início, sem meio e sem fim.