TANCINHA
Ao me olhar no espelho naquela manhã, depois de uma noite de festa, em que a bebida corria "à la vonté", meus olhos estavam inchados e uma dor de cabeça horrenda, a boca amarga como fel, comecei a rir igual a um idiota ao recordar quando fui colar grau com o olho roxo, devido à briga que tive com o marido de Tancinha.
Meus pensamentos retrocederam à nossa história.
Voltei ao quarto com a cabeça em tempo de estourar, deitei, lembrando no dia em que Tancinha foi à farmácia comprar analgésicos para a mãe que estava sentindo a mesma dor que sinto agora, e ao invés de voltar para casa, foi dançar com um candidato à deputado, em cima do coreto, onde acontecia o showmício.
Havia uma multidão vendo o espetáculo.
Cada candidato, ao fazer uso da palavra, dava a ela um rompante maior para que o aplauso da multidão ressoasse nos quarteirões da pequena cidade do sertão.
Tancinha, depois comprar o remédio, não conteve o assanhamento e foi para a frente do coreto toda sorridente, a fim de se aparecer, esquecida completamente do que a mãe havia lhe dito.
Conheço Tancinha desde menina e sei bem da mãe escandalosa que tem e dos fofoqueiros que enchem a rua, desgastando o nome das moças solteiras e bem resolvidas, nascidas nas cidades interioranas do nosso amantíssimo nordeste.
Constância é uma delas, desobediente como diz sua mãe, não dá ouvidos a ninguém e faz o que bem quer. O pai faleceu quando ainda era pequena. A mãe criou-a sozinha, mais os cinco irmãos.
O episódio ocorreu quando a mocinha tinha por volta de treze anos. Já era de noite e nesse dia, acontecia na praça principal a exposição e discursos dos candidatos que, entre uma fala e outra, punha o artista local para incrementar a situação e animar o povo. E eis, que Tancinha oferecida que só, não atendeu o pedido da mãe, indo saracotear com seu rebolado, instigando ainda mais os machos presentes e arrancando gargalhadas de todos os atrevidos desacompanhados.
Nesse tempo, os partidos podiam se valer de um cantador e instrumentista para abrilhantar os eventos angariadores de votos.
Constância, ao atravessar a praça, não pensou duas vezes para ficar um pouco por ali e dar o ar costumeiro da sua graça, mas, deixa estar que a mãe recomendou para não parar em lugar nenhum e que ia cuspir no chão, caso, o cuspe secasse e ela ainda não tivesse retornado, a surra ia cantar no lombo.
Ao ser chamada para subir ao coreto, não cabia em si pelo lisonjeio do convite e já entrou leve e faceira, jogando o quadril. Aos primeiros acordes da canção forrozeira, na ponta dos pés, ela dá os primeiros passos e puxa um dos homens que está no palco, com seu jeito mais saliente e sensual. Sequer pediu licença à dama que o acompanhava. O cara não podia dizer não, ainda que a mulher fizesse uma cara nada simpática, reprovando totalmente, o comportamento de Constância.
O casal começa a dançar. Tancinha dá tudo o que tem na rebolada e nos passos do forró efervescente. Sua saia curta rodopia e o povo grita, ao tempo em que explodem os aplausos. A praça tomada de gente. O sanfoneiro gostando da situação, estica a cantoria e a moça esquece do compromisso com a mãe e da sova prometida.
Eu já agonizava com aquela situação. Tancinha suada, esfregava no candidato, jogava a cabeça e a cabeleira volumosa passava próxima ao rosto da esposa do sujeito. Claro que ele estava pouco à vontade, afinal na presença da companheira não podia se exceder.
A multidão aplaudindo e pedindo bis.
Tomei o maior susto quando vi que a mãe espalhafatosa acabava de subir ao palco e ir em direção do casal arrastando a filha pelos cabelos e esbofeteando-a com tanta ira que sobrou bofete até para o candidato e o sanfoneiro, contudo, os berros dos que assistiam, não cessavam. A velha enrolou o braço na cabeleira da filha e as duas desceram rua abaixo. Tancinha argumentando, chorava, enquanto a mãe a esmurrava, esbravejando. O sanfoneiro, que certamente havia tomado umas e outras, com o safanão da mãe da moça, caiu sentado no chão e sua sanfona foi parar em cima da cabeça de uma senhora que estava na frente do coreto, sentada ao chão amamentando seu bebê. O galo feito pelo peso da sanfona, quase cantou, por pouco o corte não seria profundo...
Meu coração batia forte. Sai correndo atrás delas. As duas desceram rua abaixo, Tancinha chorando e a mãe aos gritos e palavrões enchia-lhe de tapas.
Por causa do destempero da mãe e todo horror vivido por ela, da pracinha até em casa, ficou escondida no outro dia, de forma que eu a espreitava querendo ver como estava, porém, minha apreensão durou até na segunda-feira.
Na segunda bem cedo, plantei em frente à sua casa. Esperei até que saísse para ir à escola. Fomos juntos.
Meu desejo era estudar na mesma sala que ela, mas estava finalizando o ensino secundário, enquanto ela o iniciava.
No caminho para a escola ia observando se ela estava bem. Claro que estava! Havia até comentado com mamãe sobre o ocorrido, o que prontamente me disse que “pé de galinha não matava pintinho”.
Mamãe não gostava de Tancinha. Volta e meia ela aparecia na minha casa para que eu lhe ajudasse nas atividades de Matemática e enquanto eu a ensinava, ela aproveitava para acariciar minhas pernas com os pés, por baixo da mesa, quando não ia com a blusa desabotoada e sem sutiã, debruçando sobre mim, enquanto eu lhe ensinava os exercícios de cálculos. Mamãe ficava tiririca de raiva e me dizia que se eu desse corda, ela bateria em nós dois de cabo de vassoura e não ia mais deixar que ela frequentasse a nossa casa. Por isso, eu me fingia de frouxo, assim, poderia ficar com ela, já que a mãe dela havia me expulsado de lá, numa noite em que fomos brincar de esconde-esconde e a demora dos irmãos dela em nos encontrar foi grande.
A culpa não era minha, até então, quando ela me pegou pela mão e escondemos dentro de um banheiro em desuso no fundo do quintal da sua casa. Lá dentro, enquanto nos procuravam, ela me agarrou, me amassou todinho que fui para casa em deleite, sem nem me incomodar de ter sido expulso quase à ponte pé, por sua mãe.
Tancinha era atrevida, astuciosa e mentia como ninguém. Enquanto os irmãos diziam que nós dois estávamos aos beijos dentro do banheiro, ela negava com tanta veemência, que até eu me convenci que aquilo tudo era apenas imaginação da minha cabeça.
Na escola, Tancinha futricava com todos os moleques e eu morria de ciúme. No fim da aula, íamos para casa discutindo. Ela argumentava dizendo que eu não era de nada. Era filhinho da mamãe e que ela não estava fazendo nada demais. Realmente não estava, insinuava, atiçava e fingia de morta.
Esse “afair” entre nós, começou na infância quando as professoras dos anos iniciais do ensino fundamental resolveram promover uma quadrilha de São João, entre as salas. Deu certo de sermos o casal de noivos. Dali em diante não nos largamos mais. De vez em quando brigávamos e passávamos a semana inteira sem nos falar. Quando isso acontecia, eu tinha até insônia. Procurava falar com ela, levava-lhe um lanchinho, chocolate, mas, ela ficava irredutível.
Foi uma tentação por vários anos. Perdia muitas vezes a esperança de que um dia o meu desejo pudesse se consumar. Não tinha vergonha de correr atrás dela. Meus colegas viviam gozando da minha cara.
Enfim, terminei o ensino médio e como na nossa cidade não havia graduação superior, fui estudar em Campina, deixando para trás meu primeiro amor.
Nas férias, assim que cheguei em Cajá, tratei de ir vê-la, mas ela havia viajado para a capital com a tia. Que férias tediosas! Mas como dizem que a distância promove coisas que transforma a gente, lá isso é verdade.
De volta aos estudos, certo dia, percebi que quase não pensava mais nela. Aquele sentimento que amofinava meu coração havia abrandado.
Aos meus olhos, Constância era a mulher mais linda que já existiu. Tinha traços finos e delicados, o corpo e pernas perfeitos, nem de mais, nem de menos, na medida exata aos meus encantos. A pele clara, sem nenhuma acne, os cabelos sedosos, volumosos e lisos.
Os anos foram passando. Faltavam poucos meses para a minha formatura. Não via a hora de poder começar no emprego que consegui, durante meu estágio. Estava muito feliz. O salário era excelente. Em pouco tempo minha situação financeira daria um salto gigantesco.
Fazia exatamente cinco anos que não via Tancinha. Raramente me lembrava dela e até ria da minha louca paixão. Apesar disso, por um momento tive vontade de revê-la.
Nesse dia ao sair da faculdade passei pelo porto, queria comprar uns camarões.
Percebi que uma embarcação acabava de atracar. Dela desceu um casal alegre, sorrindo e ambos saíram correndo pela areia. Reparei que a mulher parecia muito com Tancinha, mas fiquei na dúvida. Entrei no carro e fui pela orla observando os dois e vi quando seu cachecol saiu voando e esbarrou no para brisa do meu carro cobrindo minha visão. Parei. Peguei-o. O perfume que dele exalava me deixou excitado. Olhei na direção deles e não os vi mais. Queria devolver o lenço, mas, acabei levando-o para casa.
Esse foi um dia exaustivo, estava cansado.
Inúmeros pensamentos pingados povoavam minha cabeça. Constância era o centro deles. Precisava saber quem era aquela mulher e porque se parecia tanto com ela.
No outro dia, voltei à praia.
Era fim de tarde e a areia estava deserta, exceto alguém que vinha correndo em minha direção. Era ela, Tancinha. Assim que ficou mais próxima, chamei-a e a ela me olhou com um largo sorriso. O mesmo de quando éramos adolescentes. Pulamos um no pescoço do outro na maior alegria.
Sentamos na areia conversamos bastante e fiquei sabendo que estava em Campina de mala e cuia com o marido.
Retornamos juntos e ela entrou no seu hotel, enquanto eu voltava para casa pensativo. Nunca imaginei reencontrá-la assim, tão de repente e que ela estivesse tão linda.
No outro dia, saímos juntos e a noite foi longa, enfim, meu grande desejo se concretizava. Tive Tancinha só para mim. Nessa noite, dissemos um ao outro um rosário de confissões. A felicidade estampava-se em nossos olhos, por alguns instantes até esqueci de que ja era casada. Tive um certo sobressalto ao me lembrar que ela tinha um marido.
Toquei no assunto e ela me disse que ele havia arranjado emprego no estaleiro. Trabalhava vinte e quatro horas corridas, depois descansava, outras vinte e quatro.
Essa situação me deixava um pouco preocupado.
Nossos encontros ficaram cada vez mais frequentes e nossa paixão mais ardente.
Por ser muito bonita, conseguiu emprego numa agência de publicidade e passou a estudar à noite. Às vezes, buscava-a no trabalho e a esperava no estacionamento do hotel, enquanto ela se arrumava para ir à faculdade.
Certo dia, quando ela entrava no meu carro, o marido apareceu. Ela me apresentou como colega de curso e disse que a carona não tinha sido proposital – disse que me viu ali e pediu para leva-la. A cara do marido não era boa, mas, enfim, ele ficou e nós fomos.
Nesse dia, depois das aulas dormimos num motel, quando a deixei na frente do hotel, o dia já estava quase amanhecendo.
Não sei que desculpa ela inventou. Apesar de minha apreensão, não tocamos mais no assunto.
No mês seguinte, ela e o marido mudaram para um condomínio de apartamentos, mas isso, não atrapalhou em nada nosso caso. Aliás ficou bem melhor, porque quando o marido estava no trabalho, eu subia com ela e a gente se amava muito antes de ir para a faculdade.
Fomos nos envolvendo nessa teia até o dia que o marido nos flagrou juntos, na cama. Foi horrível. Atracamos-nos aos socos e xingamentos. Levei a pior, porque sai com o olho roxo.
Os vizinhos chamaram a policia e fomos parar na delegacia.
Faltavam dois dias para minha colação de grau.
Na cerimônia de colação, eu era o último da fila, quando me chamaram para receber o canudo, além de estar com o olho roxo, escorreguei no tapete e sai catando cavaco, indo parar aos pés do reitor, fazendo todos caírem na gargalhada.
Depois da formatura, fui visitar meus pais e lá passei alguns dias, até ser convocado para ocupar a vaga que pleiteei.
Foi preciso alguns hematomas e um olho roxo, para que eu definitivamente, perdesse o encanto por Tancinha.