INÁCIO, O CURANDEIRO

Há vinte e cinco anos ele vagava, de um lugar para outro, sempre se escondendo, para não correr o risco de que o descobrissem. O recanto que elegera, a princípio, para passar os primeiros tempos, ou anos, quem sabe, era praticamente ermo. Apenas uns poucos vizinhos. Gente muito simples e humilde. Para seus propósitos estava ótimo. Era assim mesmo que queria. Dinheiro para sobreviver, durantes muito tempo, ele tinha. Trouxera, talvez, mais que o suficiente.

A casinha, na qual se instalara, estava plantada bem no sopé da serra, à beira de um córrego. A primeira noite foi difícil e assim os dias seguintes, que passavam lentos, monótonos e tristes. Mas ele foi se acostumando, esforçando-se por sentir-se em casa, apesar da saudade de sua amada Maria Antônia ser dolorida. As lembranças do terrível acidente, no qual a perdera, torturavam-no. Às vezes, chorava. Agora seguiria sem ela, por uma estrada que jamais tivera em seus planos.

No esforço para habituar-se, passou a fazer meditação e à medida que o tempo passava e ele aumentava o exercício da prática, mais se integrava à natureza. A casca do homem velho ficava para trás. E tudo se fazia novo. As lembranças já não o perturbavam, assim como o receio de ser encontrado. Sua sensibilidade se aguçava e se expandia, conferindo-lhe uma profunda leveza de espírito. Uma espécie de onisciência e onipresença o integravam ao todo universal de uma forma fantástica. Tudo nele se expandia. De seu aparato sensorial, à flor da pele, nada escapava, de forma que o que acontecia ao redor, era como se fosse dentro dele.

Com certeza, este novo ser, que ele convencionou chamar Inácio, não caberia na vida antiga e ninguém tinha o direito de condená-lo por isso.

Raras vezes, necessitou ausentar-se, para comprar víveres, na pequena venda de Zé Norberto. A quem encontrava, nessas ocasiões, apenas cumprimentava: bom dia, boa tarde. Nada mais que isso. Era dessa forma, que os ia conhecendo, por fora e por dentro. Lia seus pensamentos e sentia suas dores e alegrias, como se fosse tudo muito natural.

Certo dia, dois anos depois que viera para ali, chegou à vendinha e encontrou Zé Norberto triste e angustiado. De imediato, identificou mentalmente a razão: Luzia, a esposa, estava na cama, passando mal. Viu-a, deitada lá e sentiu sua dor. Naquele momento, apoderou- se dele uma certeza enorme, de que se a tocasse, ela ficaria curada. Estava sendo instigado, por alguma força estranha, a tomar essa iniciativa e assim o fez. Comunicou a Zé Norberto, que aceitou sem duvidar e os dois dirigiram-se para o quarto. Inácio pôs a mão direita sobre a cabeça de Luiza, fez uma breve transmissão de energia e saiu do aposento.

- Daqui a um pouquinho ela ficará boa, disse ao marido.

Pegou suas compras e deixou o local, com a certeza de que fizera o que deveria ter feito. O que ele não sabia, era que, a partir daquele momento, sua vida tomaria um novo rumo.

A notícia da cura espalhou-se e a casinha de Inácio virou uma peregrinação. Todo dia, havia alguém buscando a cura para seus males. E ele curava. Não cobrava por suas intervenções, uma vez que apenas exercitava que se lhe tornara natural; um dom, dizia. Gratos, os curados o presenteavam, normalmente com galinhas, patos, marrecos, ovos, leitões, roupas.

A fama de milagreiro ultrapassou os limites do município e também dos municípios vizinhos. A procura aumentou. Já estava aparecendo gente de muito longe e Inácio começou a sentir- se desconfortável. Verdade que já não parecia aquele homem pelo qual ainda procuravam. Emagrecera, estava envelhecido, cabelos e barbas longos e brancos. Todavia precisava ser prudente. Não desejava que descobrissem seu paradeiro. Até porque a vida do passado acabara definitivamente. Estava feliz, sendo o ser humano iluminado que se tornara. Além do mais, já dez anos se passaram, desde que ali chegara. Estava na hora de mudar. No dia seguinte partiria, para bem longe.

Foi o que fez. O aluguel da casa estava certo e a ninguém devia satisfações. Saiu de madrugada. Andou durante quatro horas, pegou um ônibus e rumou para o sul. Três dias depois, chegou ao local, que vira em sonho. Um sítio de belas paisagens, aparentemente com tão poucos moradores, quanto o lugar de onde viera. Estava ótimo! Ficaria ali cinco anos, depois iria para outro lugar, onde permaneceria mais cinco anos e assim sucessivamente, de cinco em cinco anos, até que sua caminhada se encerrasse.

Nem bem se instalara e o primeiro doente apareceu. Ele atraía doentes. A notícia espalhou-se e a procura cresceu. Quando venceu o tempo que determinara, para permanecer ali, já era uma figura bastante conhecida e respeitada. Muitos o chamavam de santo. Então, sentiu a necessidade de mudar-se novamente.

Foi mais para o sul. Inconscientemente, afastava-se cada vez mais de sua terra natal; a missão a que se propusera, contudo, se fortalecia com o passar dos anos.

O quinquênio seguinte, em nada diferiu dos anteriores. Tudo acontecia de forma semelhante: os doentes chegavam, as curas aconteciam e Inácio recebia presentes.

Na noite anterior, ao dia em que se mudaria pela quarta vez, rumo a mais uma etapa de sua caminhada evolutiva, voltou a sonhar com seu novo campo de trabalho. Duas mulheres e um homem, sentados na varanda de uma casa, à beira de uma estrada, conversavam sobre a grave enfermidade que atingira o marido de uma delas. Estavam tristes e desesperançados. Um pouco à frente, outra casinha, humilde, pintada de branco e rodeada por uma velha cerca ripada. Era ali, naquela casinha, que encerraria sua jornada. Gostou. O conteúdo do sonho lhe permitiu concluir que teria mais cinco anos para praticar o que decidira chamar de caridade. Esta seria, portanto, sua mudança derradeira. Não precisaria mais temer que fosse descoberto. Estava sereno e feliz. Quando terminasse, teria oitenta anos.

Assim como sempre aparecia e desaparecia, saiu, na madrugada seguinte, sem que ninguém o visse.

No quarto dia de viagem, quando o ônibus passava pelo local que ele identificou como aquele que vira no sonho, tocou a companhia. O coletivo parou, ele desceu, caminhou durante alguns minutos e viu a casa. O homem e as duas mulheres, tão concentrados estavam na conversa, que não o viram chegar. Quando se deram conta, estava ali, aquela figura espetacular, parada diante deles, toda de branco, inclusive os longos cabelos e barbas. “Meu Deus! Um fantasma? Um personagem arrancado das páginas do velho testamento? Um santo que veio para nos ajudar? ” Pensaram os três.

- Boa tarde! cumprimentou. Não fiquem assustados, meu nome é Inácio. Não sou santo, nem fantasma, vim para ajudar o enfermo.

- Graças a Deus! disseram em uníssono e lhe convidaram para entrar.

Poucas palavras depois, adentraram o aposento, no qual Inácio encontrou o doente. Pediu-lhes que permanecessem em silêncio, estendeu as mãos sobre o leito e assim ficou por alguns minutos, em transe. Ao terminar o ato, olhou para a esposa do acamado e disse-lhe que seu marido não morreria, pelo contrário, no dia seguinte estaria bom.

Na sequência, ofereceram comida a Inácio e lhe convidaram para permanecer com eles, pelo menos até o dia seguinte, posto que já estava preste a anoitecer. O que, naturalmente, ele esperava que acontecesse.

Dia seguinte, Pedro, o doente e proprietário das casas, foi o primeiro a sair da cama, perfeitamente bem. Na conversa que estabeleceram, a seguir, Inácio relatou o sonho. Pedro, grato pela cura e honrado com a presença, em sua casa, de um ser humano tão importante, ofereceu-lhe a casinha. Era de sua mãe, que morrera há apenas dois meses.

-Tudo o que ela possuía, está lá, do mesmo jeito que deixou. A casa é sua, para ficar o tempo que quiser.

Agradecido, Inácio se instalou na simpática casinha e, com ajuda de Pedro e Júlia, foram colocando tudo em ordem, até ficar do jeito que ele queria. Tudo de que precisasse, estava ali, a sua disposição.

Quando os dois saíram, Inácio sentou-se na posição adequada para meditar. Recordou de sua amada companheira Maria Antônia e sorriu. As lembranças não mais o entristeciam. O ser humano que hoje é, deve a ela. Está feliz e jamais, em nenhuma hipótese, trocaria sua vida atual pela do passado.

Os primeiros cinco dias, aproveitou para entrar em contato com a natureza local, fazer meditação e expandir cada vez mais sua sensibilidade. Durante esse tempo, somente Pedro e Julia apareceram, para trazer-lhe comida. Eles o visitavam, todos os dias, de manhã e à noite. Já era um ente querido, da família.

No sexto dia, apareceu a primeira pessoa pedindo ajuda. Depois não parou mais. Ele atendia a todos com amor e a mesma dedicação de sempre. Agora, sem nenhuma preocupação, atendendo gente de lugares distantes, pois tinha certeza de que não seria mais descoberto e se fosse, ninguém o levaria.

No quarto ano em que ali chegara, Inácio lembrou-se do sonho e concluiu que a ampulheta de seu tempo estava no último grão. Errou. Os oitenta anos vieram e passaram. No mesmo ritmo, completou oitenta e cinco. Agora, então, já sentindo o peso do tempo que carregava sobre os ombros. Pedro e Júlia, que se arvoraram em seus dedicados cuidadores, impuseram regras a seus atendimentos. Só poderia trabalhar três vezes por semana e mais tarde reduziram para dois dias.

Na medida em que os noventa anos se aproximavam, a certeza de Inácio, de que sua jornada estava para ser encerrada, era clara e forte. Seus movimentos já eram lentos, sua voz enfraquecera. No entanto ele nunca estivera tão lúcido e tão feliz. Seus atendimentos reduzidos a um dia por semana, propiciavam-lhe tempo para relembrar. Assim, pôs-se a vasculhar as páginas esmaecidas de seu, agora, tão distante passado: Viu-se jovem, feliz e sonhador, ao lado de sua bela e elegante esposa Maria Antônia. Vinte e cinco e vinte e três anos, respectivamente, ambos formados em engenharia mecânica. Começaram suas vidas com uma pequena fábrica de motores para eletrodomésticos. Já tinham um filho, o Artur. Trabalhando incansavelmente, foram progredindo. Aumentaram o espaço físico, contrataram funcionários e diversificaram seus produtos, com a produção de outros tipos de motores mais pesados. Em dez anos, abriram quatro filiais, duas no seu estado e duas fora.

Quando Inácio, aliás, Heitor Pereira da Costa completou quarenta e nove anos, já conhecido no meio empresarial de todo o país, com filiais até no exterior, aconteceu o acidente, que redirecionaria sua trajetória para sempre. O casal saíra para comemorar seu aniversário, com um grupo de amigos. Ele exagerou na bebida e, na volta para casa, bateu o carro em uma árvore. Maria Antônia morreu no local.

A partir desse dia, Heitor perdeu o interesse por tudo. Sem a presença de sua amada companheira, nada mais importaria. Passou a direção das empresas para Artur e caiu no mais profundo desânimo. Sua vida não tinha mais sentido e quando um homem perde o sentido da vida, começa a morrer. Foi o que aconteceu. Heitor estava morrendo. E assim, imerso nesse abissal estado de tristeza, mais um ano passou. Então, ele tomou a decisão mais radical que poderia ter tomado: pegou todo o dinheiro do cofre, entrou em seu carro e desapareceu. Andou durante dias, sem rumo, sem pensar em nada definido. Queria apenas fugir para bem distante e nunca mais voltar. Parou num lugar solitário, abandonou o carro e continuou a pé. Com uma trouxa na mão, na qual levava o dinheiro e duas mudas de roupa.

Ele tinha consciência de que seria exaustivamente procurando durante dias, meses, anos. Encontrariam o carro, mas não ele, porque estaria morto. Teceriam as mais disparatadas hipóteses sobre seu desaparecimento; nenhuma, porém, se sustentaria, em razão do insucesso nas mais rigorosas buscas. Artur não desistiria, tinha certeza, mesmo quando todas as autoridades já houvessem abandonado as diligências. Em vão, porém.

De volta ao presente, era madrugada e dormiu serenamente. Acordou-se às oito horas, animado, feliz, sentindo que aquele seria um dia muito especial. Tomou tranquilamente o café, trazido por seus amigos e aguardou. Era dia de atendimento. Às nove horas, chega o primeiro consulente, em companhia de Pedro. Era um jovem alto, bem vestido, impressionantemente parecido com seu filho. Era como se o próprio Artur estivesse ali, diante dele, como no passado. Sacudiu a cabeça, para superar o momento de embriaguez emocional e buscou amparo na razão; afinal, Artur estava com muito mais idade, tudo não passava de um embaraço mental. Não obstante as considerações racionais, a forte atração entre ambos os uniu num carinhoso abraço. Tanto que Inácio ficou tomado de uma emoção que há anos não sentia.

Na sequência, o jovem tomou a iniciativa e passou a desfiar sua história. Chamava-se André, há três meses estava na cidade, sede do município, a trabalho, em uma nova filial das empresas do pai. Há anos sofria de uma persistente dor de cabeça e na interação com um funcionário, veio a saber sobre o poder curador de Inácio. Por isso estava ali.

Visivelmente interessado, já quase certo de que estava diante de seu neto, Inácio quis saber mais: de onde ele viera; que tipo de motores fabricavam e como começaram a produção; quem era seu pai.

À medida que André falava sobre a história do conglomerado industrial, iniciado pelos avós, tão tragicamente desaparecidos, mais Inácio se esforça para não demonstrar a emoção que, teimosa, escorria dos olhos em lentas gotas. Estava, de fato, conhecendo o neto.

Quando André deixou o local, com o objetivo da visita realizado, embora sem entender o interesse e a emoção do simpático curandeiro, começava a suspeitar do mistério, que precisava desvendar.

De volta à fábrica, ligou para o pai. Em cinco dias os dois estavam na casa de Pedro, à procura de Inácio.

- Infelizmente chegaram tarde – informou Pedro. Inácio faleceu há três dias. Enterramo-lo no cemitério da cidade. Se desejarem, poderei conduzi-los até o local.

- Vamos, por favor - respondeu Artur.

Era um túmulo comum, apenas um montículo de terra, na parte reservada aos defuntos pobres. Na cruz rústica, uma coroa de flores pendurada e, a título de identidade do falecido, a seguinte inscrição: INÁCIO, O CURANDEIRO.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 29/04/2020
Reeditado em 18/11/2020
Código do texto: T6932409
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