O CORVO BRANCO

6 - Racionalismo e Empirismo - Parte 2

Francisco Góis era uma criatura quase que albina, pois sua pele era extremamente branca e desde muito jovem, se é que foi jovem um dia, tinha grisalhos cabelos. Sua aparência elegante se constratava com sua estatura mediana. A seriedade dos traços duros lhe conferia uma aparência que impunha respeito e para alguns até mesmo, por trajar-se sempre de negro, um certo medo.

Morava sozinho no casarão dos falidos Valença de Lima, um solar cinzento e sombrio que necessitou de uma boa obra para que se tornasse habitável. Seu novo morador tinha gostos refinados e simples, poderia se dizer que a concepção da sobria decoração era espartana. Mais parecia a cela de um monge celibatário, o casarão era tão desprovido de móveis e enfeites, que o vento da tarde assoviava com eco por seus cômodos. 

Francisco tinha apenas dois empregados, um casal sem filhos, a velha Esther governanta e seu fiel mordomo Luiz, ambos o conheciam desde de criança e sabiam de seu passado de dor, o pai traíra sua mãe inúmeras vezes e um dia não suportando mais, ela tirara a própria vida. O pai que apesar de devasso, amava a mulher à sua maneira tôsca, arrependido e consumido de desespero, enforcou-se na frente de Francisco,  na árvore que ficava a frente da casa, o menino hoje um homem, jamais se recuperou. Seus tutores lhe passaram o negócio têxtil da família, logo que viram que estava preparado para tal. Ele focou no trabalho, triplicou o patrimônio, vendeu tudo e se mudou para longe da cidade, era avesso aos relacionamentos. Se por acaso se envolvera com alguma mulher, Esther e Luiz não tinham conhecimento.

A única beleza na propriedade era ficar em frente ao Lago das Manhãs, só mais uma casa havia por perto, pequena com gerânios nos beirais das duas janelas, branca de janelas e portas azuis. Parecia bem conservada apesar de estar vazia há tempos. Talvez o proprietário a mantivesse em ordem para uma possível venda ou locação. Durante aquele ano que Francisco chegara, mantinha-se solitária e muda.

Os dias passavam iguais, livros, jornais, cachimbo na cadeira de balanço à beira do lago, Esther e Luiz nos seu afazeres ou simplesmente passeando pelas bordas do lago, não tinham muito trabalho por ali, o patrão não recebia visitas, tampouco saia, uma rotina de calmaria que dava sono. Francisco apreciava comida simples, exceto quando pedia arenque com batatas e pudim salgado, Esther olhava para ele saboreando o prato e parecia sentir prazer naquilo, pobre rapaz ela pensava, quem sabe um amor não lhe chegava e trouxesse a alegria de volta à sua vida. Recluso ali, seria difícil isso se concretizar, mas, aí numa manhã primaveril de brisa doce e aveludada, chegou Iolanda  e suas filhinhas gêmeas, Luna e Sol, um contraste doce, alegre e luminoso. Iolanda era viúva há quatro anos, amealhou uns bons cobres de herança e não precisaria trabalhar se administrasse bem o que tinha por patrimônio.

Iolanda desejava uma vida saudável para as filhas, até que por elas mesmas fizessem sua escolhas, a casa do lago era perfeita para as três, mimosa, confortável e cheia de vida. No mesmo dia que chegou a mudança fez amizade com Esther e Luiz. Eles adoraram as meninas, Luna doce e pacata, cabelos de um castanho bem claro e  lindos olhos cinza azulados, já Sol era a luz em pessoa, esfuziante, cabelos louros arruivados e os olhos negros e profundos da mãe. Por certo Luna se parecia com o pai, mas, a doçura era de Iolanda com certeza. Sol tinha o mesmo sorriso da mãe e uma nítida vontade de viver, pulsavam boas energias se estando perto dela, talvez precisasse desse recomeço, esquecendo a doença fatal que levou seu jovem e amado marido. Claramente se notava, que havia virado a página para novas felicidades.

Esther e Luiz bem que gostaram de ter com quem conversar e as meninas eram espertas e encantadoras. Já Francisco, nem sequer ficou curioso, ao contrário parecia incomodado com a alteração da rotina na paisagem serena. Iolanda e as filhas ainda não o conheciam, pouco souberam por Esther e Luiz, sempre muito discretos. Já Esther ficava imaginando se não seria bom para Luiz, conhecer a jovem viúva...Ah! Desejos de casamenteira rsss...

Seria inevitável que eles não se vissem, o lugar era muito pequeno e a proximidade um dia se daria e não demorou muito. 

Numa bela tarde domingueira, Iolanda aparece no portão do casarão do 'corvo branco' como em segredo Esther e Luiz se referiam ao patrão, tinha uma bela e cheirosa torta de maçãs com canela e um arranjo de gerânios nas màos, apenas para se apresentar ao morador e agradecer o carinho pela acolhida de Esther e Luiz em sua chegada.

Mesmo que Francisco tivesse a intenção de sumir da sala, Luiz fora muito rápido na abertura da porta. Foi polido e educado, agradeceu os mimos e se não fosse por Esther, ele a teria colocado para fora, mas, ela aceitou a chávena de chá oferecida. Informou que as meninas estavam tirando um cochilo e aproveitou para fazer uma rápida visita. Percebendo a frieza velada, após o chá, agradeceu a recepção e voltou para casa, mas, aqueles olhos negros profundos, não sumiram rápido da mente de Francisco. Teve sonhos leves naquela noite.

Os dias estavam mais quentes e bem cedo, Francisco se aventurou a nadar no lago, qual não foi a sua surpresa ao ver as gêmeas Luna e Sol nadando com experiência e Iolanda com um vestido leve e florido sentada sobre uma manta no gramado, a beleza dela emoldurada pela paisagem do lago, daria um quadro lindo.

Ela olhava as meninas confiante, embora pequenas nadavam muito bem e seus gritinhos davam mais vida ao lugar. Francisco apenas respondeu ao aceno dela, mergulhou e dando umas boas braçadas, recolheu seus pertences e voltou para casa para tomar café, gostava de sua solidão pálida e o lago estava 'movimentado' demais... Seus passos foram seguidos pelo olhar de Iolanda e pelos gritinhos de ...Tchau! Moço... de Luna e Sol, só que não obtiveram resposta, Iolanda pensou, que homem estranho, soturno...cada qual com sua lenda...pensado isso voltou sua atenção para as meninas e para o livro que tinha no colo, logo as chamaria para o café da manhã.

Quando Francisco entrou, Esther foi logo perguntando se ele havia se encontrado com a família que morava ao lado, cheia de uma curiosidade que não vingou. Francisco apenas disse que respondera ao aceno da mulher, tomou seu café se recolhendo em seguida para ler na biblioteca.

Enquanto Esther cuidava da cozinha, Luiz foi ter com Iolanda e levou duas bonequinhas de madeira que ele mesmo entalhara para dar de presente às meninas, foi um sucesso, a alegria brejeira delas era contagiante, Iolanda lhe ofereceu um chá gelado que ele apreciou, se despediu e retornou aos seus afazeres ao som dos tchauzinhos de Luna e Sol.

Francisco não sabia se seria bom, tanta proximidade dos seus fiéis escudeiros com a vizinha e suas filhas, mas, ele era um recluso e não poderia privá-los de se relacionar com outras pessoas, só que as manhãs e finais de tarde no lago, não tinham mais tanta calmaria, as meninas pareciam um imenso arco-íris colorindo o lugar, só que dentro dele já havia morrido a vida, ao menos era assim que se sentia antes da chegada luminosa das vizinhas, há de se convir que eram uma linda e afetiva família.

Percebeu também, que quando ela assava alguma carne o aroma que vinha de lá era bem gostoso, por certo Iolanda era uma boa cozinheira. A torta que havia trazido em sua chegada, estava muito saborosa. Francisco notou que nos seus primeiros e últimos pensamentos dos dias seguintes, Iolanda sempre estava, mesmo de longe ela era cativante, algo dentro dele se dissolvia, não sabia se era dor, reserva ou medo de se expor, não suportaria mais sofrimento. Esther e Luiz percebiam que 'o corvo branco' estava mais lúdico, até apareceu num dia pela manhã, trajando um roupão cinza e vinho desprezando os trajes inteiramente negros, como de hábito. Esther aproveitou para comprar umas flores sobrias para espalhar pela casa, até mudou a louça branca de bordas prateadas, por uma louça mais jovial nos cafés das manhãs, um pouco de cor por ali faria bem para a alma. 

Duas semanas depois, Francisco aceitava bem que as meninas nadassem perto dele, tinham uma convivência cordial. E Iolanda respeitando os espaços, apenas sorria docemente.

Esther esperou o momento certo para propor ao patrão, um convite para um almoço no casarão, acreditava piamente que Iolanda seria a alma gêmea de Francisco, custou bastante, mas, o convenceu enfim.Convite feito e aceito alegremente, agora era se superar na cozinha, mas, Iolanda disse que a sobremesa ela levaria, uns muffins de queijo doce e um pudim de natas com framboesas que era receita de família. Tudo combinado e Esther partiu com Luiz para a cidade a busca dos ingredientes, precisava agradar aos adultos e as crianças. Como eram praticamente da família, almoçariam todos juntos.

Só Iolanda e as meninas não perceberam a mudança em Francisco, quando ele saiu de seu quarto vestindo calcas caqui, camisa branca e sapatos esportivos, a boca de Luiz se abriu enormemente e os olhos de Esther sorriam, parecia uma outra pessoa. As meninas gostaram da mudança e causaram um certo desconforto em Francisco ao se agarrarem às suas pernas, mas, ele foi delicado ao afastar as gêmeas, até esboçou um sorriso. Iolanda ficou encantada com a cortesia, da maneira dele foi um gesto simpático. 

A comida estava ótima, mas, as sobremesas que Iolanda preparou foram o auge do almoço. Francisco até repetiu o pudim de natas, logo ele que era cheio regras quanto a aparência, comeu com muito prazer. Depois do almoço, Esther preparou um chá e serviu na varanda, estava uma tarde linda. Luiz foi brincar com as meninas à beira do lago, contou historinhas antigas e elas adormeceram em seu colo. Prontamente Francisco foi ajudá-lo e ambos levaram as meninas nos braços até suas camas na casa de gerânios nos beirais das janelas. Eles acharam a casa tão confortável e florida, parecia uma casa de contos e as fadinhas moravam nela. Se despediram já com a Lua anunciando a sua chegada. Iolanda entrou cantarolando e Francisco seguiu para casa bem devagar, queria prolongar a sensação de bem estar  que se instalara em seu peito.

Os encontros no lago, outros convites para almoço ou jantar se seguiram, o preto foi abolido do dia a dia de Francisco, Luna e Sol o chamavam de tio e a Esther e Luiz de vó e vô, pareciam uma grande e harmoniosa família. Os meses foram passando, mas, as dores do passado ainda impediam Francisco e Iolanda de se aproximarem de verdade, haviam arestas a serem aparadas, muros para serem derrubados só que tudo se encaminhava para um final feliz. A paixão estava no ar e a convivência diária alegrava seus corações, se dependesse das orações de Esther e Luiz eles já seriam um par. A ampulheta do tempo agora só precisava concluir o seu trabalho.




*Imgem - Fonte - Google
*fisica-interessante.com
Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 23/04/2020
Reeditado em 03/05/2020
Código do texto: T6926720
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