O Calvário florido
 
 
Quando criança, entre os meus seis e doze anos de idade, minhas férias escolares traziam-me bons dias, mas, melhores seriam, se os passasse na fazenda dos meus avós; e tantos dias bons houve!...
O saber interessava-me muito, contudo, pouco atraia-me o local do meu aprendizado, pois esse causava-me uma certa angústia, uma vez que os limites da sala de aula sufocavam-me; em compensação, quando pensava nas estremas dos campos, e que mesmo as crianças as ascendiam, acendiam em mim todas as chamas da liberdade. Meus colegas de sala de aula, com suas impertinências, irritavam-me muito, assim, eu estava sempre a ponto de preferir a amável indiferença dos animais... Por tudo isto, eu adorava os meses de julho, dezembro e janeiro, e esperava ansioso, pelos feriados prolongados.
Quando me encontrava na fazenda dos meus avós, durante os dias dolorosos — assim minha avó denominava os dias da Semana Santa — rezávamos muito, pouco comíamos, e menos falávamos; e nesses dias, sempre Sempre-vivas* em quantidade, colhíamos. O campo, aonde floresciam essas delicadas plantinhas, era bem distante da porta da nossa casa, creio que tínhamos que andar, ou antes, subir uma légua e tanto para chegarmos ao seu Calvário florido, este foi o nome que a minha vovozinha dera àquela planície onde nasciam e floresciam aqueles frágeis arbustos. Para alcançarmos esse local, haveríamos de galgar um percurso áspero, assim o fazíamos com dificuldade, pois a minha vovó, acometida pela artrose que muito lhe limitava os movimentos dos joelhos, oferecia o sacrifício à própria Paixão de Cristo. Disposta a cumprir a penitência com alegria, com tristeza, não deixava de dizer:
— Neste ano, estou suportando esta dura caminhada, mas, para o próximo, meus joelhos não vão ma permitir, pois me deixarão de cama.
Então, houve um ano em que durante toda a quaresma, minha vovozinha passou sentindo muito dos joelhos. Quando se aproximaram os dias da Semana Santa, suas dores acentuaram-se; seus joelhos ficam mais inchados; aqueles foram mesmo, os seus “dias dolorosos”!
Ao amanhecer do dia — o da Quinta-feira santa — ela acordou ainda mais triste, pois o dia escolhido para fazermos a nossa caminhada de penitência e devoção, fora sempre esse; e quase sempre, por volta das nove horas, iniciávamos a nossa longa e piedosa peregrinação, até chegarmos ao alto daquela colina onde vicejavam em abundância, aquelas florezinhas. À medida que os ponteiros do relógio, daquela hora, se aproximavam, afastavam-se do coração da minha vovozinha, as suas últimas esperanças para fazermos a nossa caminhada; assim, ela foi ficando cada vez mais triste, pois seus joelhos negavam-lhe impiedosamente, o direito de bem caminhar. Para compensar, os seus olhinhos, a partir da varanda que à frente da nossa casa ficava, a cada instante, iam até o “Calvário florido”, e traziam algumas das suas delicadas flores para deixá-las aos pés do Senhor Crucificado que estava sempre ao alcance do coração piedoso daquela criatura tão amável — o da minha vovozinha — ainda assim, ela não se conformava, pois, depois de tantos anos cumprindo nossa jornada de fé, não conseguiríamos naquele ano, colher as Sempre-vivas. Eu também fiquei triste; em volta da minha vovozinha, tentava lhe dar algum alento; meu avô, que sempre lhe dispensou muito carinho, não sabia mais o que fazer para conter-lhe as lágrimas, quando então, nos disse ele: — Leandra! Pare com este choro! Iremos a cavalo colher suas florinhas! Ah! Foi só ele falar assim, a pobrezinha chorou ainda mais. Meu avô se esquecera que sua querida esposa, por ser bem gordinha, e ter as limitações físicas impostas pela idade e a doença, não conseguia galgar a sela de um animal de sela; por conta desse impedimento, a pobrezinha sempre dizia que não gostava de andar a cavalo... Naquele momento, comecei a chorar também; assim, fomos passando a Quinta-feira Santa mais dolorosa das nossas vidas...
Meu avô, “tadinho!”; para animá-la, continuou lhe falando muitas coisas bonitas; levara-a devagarzinho, para ver a terra de feijão** que ficava logo à porta da cozinha; falava de um novo e mais bonito jardim que bem ao alcance de seus pés, ele haveria de formar; falava das outras semanas santas que viriam... Ela sempre se lembrando das suas florinhas, dizia que naquele ano, ficariam todas perdidas no campo... E ficaram, ou antes, naquele ano, não pudemos colhê-las.
Logo no Domingo de Páscoa, um terrível vendaval assolou o sítio onde eles moravam — os meus avós — Foi temporão, foi mesmo muito forte; quase que só não jogou ao chão, a residência deles; derriçou o cafezal, arrancou algumas árvores, destruiu a horta de verduras. Por tão grande estrago, ainda mais ficamos tristes... Que triste “Passagem” foi aquela!
Meu avô desanimou de plantar o feijão; a terra já estava preparada; ainda assim, ficou abandonada.
Veja a Providência divina! Aos poucos, logo após toda aquela tormenta, o próprio céu foi sarando a terra, repreendeu os ventos, disciplinou a chuva, e orientou os raios solares; assim, aproximando-se a nova quaresma, a do ano seguinte, renovado tudo já estava, até mesmo, o ânimo da minha vovozinha.
Novamente, estávamos na Semana Santa! E o nosso Calvário florido? Para surpresa e contentamento nossos, o terrível vento da “Passagem” passada, com seus fortes braços, trouxe as sementes das Sempre-vivas e as lançou na terra de feijão; logo, bem de frente aos nossos olhos, começava se formar o nosso novo “Calvário Florido”, assim, daquele dia em diante, minha vovozinha poderia colher as suas florzinhas bem pertinho de sua casa.

 
* — Sempre-viva (Helichrysum bracteatum)Erva, cujas inflorescências secas, são vendidas como adorno, por não murcharem nem perderem a cor, e cujos capítulos são pequenos, solitários, e de coloração muito variada.
 
** — terra de feijão, terra preparada e destinada ao plantio de feijão.
 















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Eugene Garrett
Enviado por Eugene Garrett em 27/12/2019
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