O casarão da Rua das Mercês
 
Quanto a mim, quando ainda bem jovem, a Miopia limitou-me a visão; para estender as minhas vistas, me vi dependente de um par de óculos, pois não haveria de me conformar se notasse só o que bem à frente do meu nariz se encontrava. Talvez, para compensar o meu estreito olhar, ao receber um par de lentes quase que perfeito, me julguei capaz de enxergar mais ao longe...  Assim, ao conceber o conto que abaixo se encontra, desejei que os teus olhos, ou antes, não só os teus, mas os de quaisquer leitores que possam lê-lo, vissem em um velho lustre, o que há de significar não só a sua beleza em si, mas sobretudo, o efeito de sua luz, que bem pode representar o brilho daquelas que iluminam os nossos lares...
 
Aquele que inicia a descida à Rua das Mercês, haverá de notar que ao longe, um velho telhado anuncia que está a proteger um grande casarão; aquele que inicia a subida àquela Rua, bem aos seus pés, e diante dos seus olhos, haverá de notar a exuberante fachada daquele casarão. Por muito desbotado que estivesse, ainda assim, tanto chamará a atenção do transeunte, a ponto de impedir que os seus olhos e as suas pernas sintam quão íngreme é esta rua, a Rua das Mercês.
Pobre casarão! Condenado por estar assentado em um rico terreno; agora em decadência, às vistas de poucos, a agonizante mansão ainda servia de deleite, mas, mais aos olhos da ganância, servia de enfeite, assim, nos últimos tempos, por várias vezes, vários homens deitaram-lhe o olhar, e deitá-la ao chão, não por menos anos, planejaram.
Sem nada impor, ele — o decaído prédio — há anos, não mais conseguia contar com o valor da sua própria e velha história, pois, aos jovens, também há anos, ninguém mais a contava, assim, contava ele, tão somente para se manter de pé, com a sua própria aparência apoiada na sua inércia; inércia à frente do último e indolente século mal vivido, quando, diante de uma cruel realidade fora perdendo a vaidade de viver, ainda assim, inabalável, ia vencendo o tempo e os homens, a quem o tempo haverá de vencer sempre...
O desusado e vetusto palacete tinha pouco mais de dois séculos de idade, e não menos que cem anos de resistência renhida às demolições; em todo esse período, abrigara e protegera com nobreza, uma única família, ou antes, de uma única família, estiveram sob a sua guarda, nove gerações; gerações sucessivas, que sucessivamente, ainda que a passos lentos, à nobreza, qualificações foram-lhes faltando...
— E o seu quintal?
O do casarão?
— Sim!
Lá se encontram também, tão bem enraizadas muitas histórias! Lá estão tantos cordões, cordões umbilicais enterrados que perpetuaram em torno de si, a presença de seus donos que à sombra das muitas árvores frutíferas, colheram o doce sabor da infância... Lá ainda vivem frondosas jabuticabeiras que com seus mil olhos negros, viram emaranhadas entre seus galhos, pelo seu néctar em redondos potinhos, tantas crianças; majestosas mangueiras com suas mangas nascentes nas alturas, a agradecer por tantos anos já vividos, ainda oferecem seus frutos àqueles que não os percebem nascidos tão próximos do céu... Ainda a oferecer seus galhos aos pássaros para acomodarem seus ninhos, veem-se laranjeiras de estirpes raras que já não mais vivas estão em outros pomares; lá também permanecem os pés de jambo, a envolver o olhar dos moços, quando, ainda que distante, estão a ver em seus frutos vestidos de veludo, a suave cor da pele de seus amores; vivos encontram-se alguns marmeleiros que por muita vez, produziram frutos de onde saía a doce marmelada que nem sempre levada à boca, mitigava o amargo de suas varas levadas às nádegas; figueiras ainda se fazem presentes, cristalizadas no tempo, a recordar que por tantas vezes tiveram seus frutos cristalizados pelas mãos daquelas que em todos os tempos, cristalizaram o amor entre as famílias... 
— E o seu jardim?
O do casarão?
– Sim!
Jardim de suas tantas essências que a tantos envolveram; jardim de flores e perfumes que velhos não ficaram para inundar a imaginação dos jovens com suas fragrâncias e cores sem idade; jardim de aromas que encantaram o tempo passado, para trazê-lo perfumado ao presente... Jardim das Damas da Noite de galhos entrelaçados entre si, que do dia, esperavam apenas a ausência da luz, para que pudessem livres, perfumar sob o olhar das estrelas, os sonhos dos jovens enamorados; jardim das roseiras brancas, que por amantes e virgens  mãos, ao altar chegaram; jardim dos jasmins de grandes ramagens que se alastravam salpicadas por tão pequeninas flores a inebriar todos os viventes que por lá passavam; jardim de vários matizes de várias flores, que ora mortas, na hora da morte, corpos sem vida, ao túmulo acompanharam; jardim, que agora, por desumanas mãos, veem interrompido o passar da seiva pelos seus galhos, que por tanto tempo, passaram com seus frutos e flores à vida dos humanos, o sustento e o perfume. 
— E o chafariz?
Oh, sim! O chafariz! Aquele que no passado, aos pássaros fora certo refrigério, aquele que mitigara-lhes a sede, hoje, os seus destroços, ora afogados na poeira, insistem em mostrar seus ornatos desfigurados.
— E agora?
Tudo será ceifado; raízes que sustentaram cores e odores serão arrancadas, pois, por mais uma vez, querem demolir o casarão da Rua das Mercês; e essa ameaça agora real, é mais encorpada, há alicerces mais sólidos para sustentá-la; elaboraram um projeto para executá-la; tudo haverá de ruir; fizeram um cronograma para jogar tudo ao chão, em seguida, sustentada pela ambição, uma nova moradia irá surgir...
— Oh, meu Deus! Que horror sentiremos, diante desta iminente destruição!
— Meu Deus! A venda do casarão fora consumada. A imprudência do velho proprietário se compôs com a ganância do novo. Ali será edificado um prédio composto de oito amplos e modernos apartamentos que muito bem seria pago pelo valor do terreno, e não pelo valor do casarão em si, pois esse, nada valia aos olhos do pretenso comprador. Que frustações sentiremos! Depois desse trato feito, desfeito será o sonho daquele alguém que não deseja despertar à nova e cruel realidade...
O senhor Tobias, este era o nome do atual proprietário, em alguns momentos, teve dúvida quanto ao negócio, pois ali nascera; não fora em outra casa que criou toda a sua família; sua mãe viera ao mundo entre as quatro paredes de algum dos muitos quartos daquela velha moradia; seu avô, pela primeira vez, vira o sol através de uma qualquer daquelas janelas, janela de qualquer um dos muitos cômodos daquele vetusto monumento; sua bisavó dera os seus primeiros passos ao longo daquele longo corredor que dava acesso aos aposentos superiores.
— Este prédio nada vale, está fadado à demolição; este terreno precisa ser desocupado! Hei de vendê-lo antes que seja tombado pelo patrimônio público! Assim dizia a mente desocupada do senhor Tobias que se ocupava com pensamentos decadentes; seus filhos abominavam tais projetos; repeliam a sua teimosia; não queriam se desfazer do lar. A esposa... Ah! Terna e amável criatura! Só quisera ver sempre a segurança dos seus filhos e a felicidade do seu esposo; quisera ver sempre os caminhos da sua família bem iluminados... Essa postura da companheira, muito incomodava o velho Tobias, não só por tolher a sua decisão imediata ao negócio, mas, mais por retratar a sua inabalável concepção de vida dela, pois aos longos anos divididos entre eles, nada estava a ser diferente, ou seja, tudo haveria de ser conservado, preservado, e legado para garantir o bem e segurança, às gerações vindouras...
Desfazendo-se ou não da velha casa, a senhora Vicência, esse era o nome da esposa do senhor Tobias, sofria com a impertinência do marido, contudo com esse crônico desconforto estava calejada! O esposo para ela tinha poucos olhos, e muitos olhares para fora do lar, davam-lhe ocupação; essa displicência, por tão antiga, perdera-se no tempo...
A nova empresa não seria boa, contudo, o velho Tobias, há tempo, se envolvera com o novo, que muita vez, pode desgastar o velho que maior valor tem... Fez-se o negócio.
Principiaram a demolição; todo o material que compunha o velho prédio, dando-lhe forma e sustentação, apenas a si, poderia servir; o decrépito imóvel, agora, deveria se decompor; jogada ao chão, a centenária casa nada seria afora escombros; talvez, com o seu entulho, poder-se-ia aterrar algum lote imprestável! O novo proprietário assim pensava... Pensava diferente um dos sobrinhos da senhora Vicência; julgava ser possível reaproveitar grande parte do material demolido antes que desprezada fosse; assim, tão logo teve disposição para fazê-lo, o antigo e o novo proprietários deram-lhe a devida permissão para que pudesse tomar posse dos despojos da demolição; poderia tirar para si, o que bem lhe aprouvesse; depois dessa autorização, o jovem foi recolhendo tudo que podia, tudo que lhe servia, e não foi pouca coisa! Bom proveito seria alcançado com os esteios de Aroeira*, com os barrotes de Monjolo**, com grande parte do assoalho que era toda de Peroba Rosa***, e ainda, as boas e perfeitas portas de Cedro**** seriam, com grande vantagem, reaproveitas, para tanto, nenhuma pessoa sensata mudaria as sua função delas.
Tudo pagou muito bem, pelo pouco trabalho que teve o jovem, ao recolher o que muito valia a pena, a ser reaproveitado; e de sobra, embaraçado entre teias de aranha, um enferrujado e poeirento lustre não fora desprezado; suas mangas de cristal rendadas nas bordas, voltadas para cima, ainda protegiam lâmpadas, quase todas, já mortas há anos, ainda guardavam restos crestados de insetos alados: besouros, pernilongos, mariposas, etc. Ainda assim, oferecia pálida luz, à custa de duas ou três lâmpadas, as quais, com suas intactas resistências, resistiram alumiando um grande salão. O cuidado maior que os anos tiveram para manter seguro ao teto o velho lustre, não foi maior que o zelo do jovem ao despendurá-lo e levá-lo para sua casa. Tão logo que pode, pôs-se a desmontá-lo cuidadosamente, em seguida, lavou-o e poliu-o; cuidadosamente, depois de montá-lo, depôs o solitário globo que mal iluminava a sua sala, dando ao velho soberano, o direito pleno de tomar posse do novo lugar, e em seguida, novamente, depois de tantos anos nas trevas, se daria à luz.
Meses depois, Tobias visitou o sobrinho. Ao adentrar pela sala de visitas, ficou maravilhado debaixo daquela relíquia iluminada; julgou conhecê-la, teve dúvida; sob o fulgor do velho lustre, sua memória, aos poucos, foi clareando; poderia ter voltado seus olhos à velha luminária, mas não conseguiu fazê-lo, tão somente os manteve voltados ao chão; talvez chorasse, creio! Sem dizer quase nenhuma palavra, despediu-se do sobrinho, deixando-o um tanto enleado.
Ao chegar à sua casa, o velho Tobias olhando para os olhos azuis da sua esposa, que jamais lhe negaram o brilho, deu-lhe um longo abraço; abraço pródigo que por longo tempo, deixou abandonado o peito da companheira; e agora, arrependido, de volta estava.
 

*       Astronium urundeuva
**     Enterolobium monjolo
***   Aspidosperma polyneuron
**** Cedrela angustifólia















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Eugene Garrett
Enviado por Eugene Garrett em 26/12/2019
Reeditado em 27/12/2019
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