A VIDA SUBLIMAR DE ROSE

Quando chegaram, restava apenas uma mesa disponível, num canto do salão e elas a ocuparam. Mal tomaram seus lugares, Rose percebeu, na mesa ao lado, bem de frente para ela, um homem olhando-a fixamente. Ela baixou a cabeça, ligeiramente acanhada e pensou em propor troca de lugar com uma das amigas, mas não o fez. A curiosidade a prendera onde estava.

O bingo começou e Rose não conseguia se concentrar. Queria prestar atenção no jogo, mas uma força estranha a instigava a levantar a cabeça e encarar aquele homem, cujo olhar sentia fixo nela e a incendiava. Não se conteve. Levantou a cabeça. Ele estava lá, olhando para ela. Quando seus olhares se cruzaram, ele inclinou levemente a cabeça e sorriu. Rose sustentou o olhar e o analisou: parecia alto, grisalho, esbelto, uns cinquenta anos. “Meu Deus, o que está acontecendo comigo? pensou, estou viúva há apenas um ano. Não posso sentir isso que estou sentindo. Ou será que posso? O padre disse até que a morte os separe. Júlio partiu, mas eu estou viva, 37 anos, talvez com ainda mais uns 50 a percorrer. Não posso me entregar”.

O bingo estava definitivamente perdido para ela, aliás, nem começara, tão mergulhada estava no turbilhão, que mexia e remexia com os recônditos de sua mente.

A cada vez que os olhares se encontravam, cenas do passado, de seu casamento de 18 anos, com Júlio, vinha à tona. Casara-se aos 19 anos. O encantamento que os aproximara e os levara ao altar, numa tarde linda de sol, durou dois anos. A magia da paixão não resistira a rotina a que foram submetidos e sucumbiu, engolida por uma alienante pasmaceira, que permeou a relação por mais 16 anos, quando ela ficou viúva. Mas havia Laura, a filha amada, a quem dera à luz um ano após o enlace e que criara praticamente sozinha. Porque Júlio se tornara um homem silencioso, ensimesmado, vivendo quase que integralmente para o trabalho, desde que o encantamento da paixão desaparecera e Laura ainda era muito pequena.

Entre um olhar e outro, Rose revivia o passado e sonhava com a construção de uma nova e linda história de amor, quando despertou do enlevo, com a presença do estranho a seu lado:

- Olá! Meu nome é Paulo...

O namoro começou. Saiam com frequência para jantares, bailes, passeios e, principalmente, para bingos, passatempo preferido de ambos. A afinidade que os unia era mágica, um enlace perfeito. Em seis meses estavam casados e a vida continuava um mar de rosas. As lembranças do passado, para Rose, emergiam esmaecidas. Era como se aquele casamento insípido, inodoro e incolor, corroído pela ferrugem do tempo, estivesse tão distante, para trás, que nem parecia ter sido ela uma das partes envolvidas.

Desde aquele dia em que seus olhares se cruzaram, pela primeira vez, cinco anos passaram. O encantamento da paixão prosseguia e eles tão felizes, como se o mundo fosse apenas seu. .

Rose era mais feliz do que jamais pudera imaginar em toda sua vida e dava graças a Deus por isso. Um dia, porém, quando ao retornar de um compromisso, na igreja, encontrou seu grande amor estranhamente sentado em uma cadeira, estático. Ele olhou para ela, sem se mover, sem dizer nada, como se estivesse colado na cadeira e, silenciosamente, chorou.

A situação inusitada paralisou Rose por alguns instantes, mas ela reagiu:

-Meu Deus! O que aconteceu, meu amor? O que tens? Fala!

Como não houve reação por parte dele, Rose se desesperou, gritou, pediu socorro. Os vizinhos chegaram, fizeram o que poderiam fazer, sem nenhum resultado positivo. Levaram-no ao hospital. Após realizados os procedimentos de praxe, nada foi constatado que pudesse dar pelo menos uma pista do que estivesse acontecendo.

E a vida de rose, outra vez, mudou. Paulo, com a coordenação motora completamente paralisada, não falava, não andava, apenas olhava, mas com um olhar tão profundo e tão cheio de significados... Porém ela não conseguia entender aquela linguagem e ficava ainda mais perturbada, sem saber o que fazer.

A situação, que já era desesperadora, piorou com o desaparecimento de familiares e amigos. Rose passou a viver apenas para cuidar do marido: dar banho, trocar fraldas, alimentar, ir a médicos e esperar resultados sempre desanimadores. Nada mais podia fazer, que lhe trouxesse um pingo de esperança, que fosse. Apenas rezava e chorava. Às vezes ficava indignada, faltava-lhe força e ânimo, sentia vontade de abandonar tudo, sair correndo, gritando. Mas Paulo olhava para ela com um olhar tão doce, tão suave, tão cheio de agradecimento e amor, que ela se sentia um pouco recompensada.

Assim, alentada com a ternura daquele olhar, os dias foram se transformando em meses e um ano passou. Sem se dar conta, de repente Rose percebeu que cuidar de Paulo já não era um peso, já não sofria, pelo contrário, a vida dele era a sua própria vida. Nada mais lhe importava, não sentia falta de absolutamente nada. Estava tranquila, serena e feliz. Estar junto dele, era tudo de que precisava, para viver o amor que os envolvia. Os dois eram um.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 28/07/2019
Reeditado em 28/07/2019
Código do texto: T6706836
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