Vida de Sapato
Assim que meus olhos avistaram-na adentrar à loja, pressenti que algo especial me estava por acontecer. Afinal havia dois anos que me encontrava ali, naquela gélida prateleira, jogado às traças, à mercê das moscas.
Quando a vi, airosamente, dirigindo-se à mim, filmando-me, com seus belos olhos verdes e, quase que lacrimejando, escolheu-me, elegeu-me.
E foi amor à primeira vista. Provou-me. Abraçou-me. Afagou-me, até atingir o paroxismo da excitação e chamou-me de “ Tesão “.
Foi assim, que entrelaçado a seus alvos e quentes braços que dei adeus aos meus amigos Sapatos, Tênis e Sandálias, que por tanto tempo, habitáramos aquela fria prateleira de Loja de Sapatos.
Hoje, caminhados, percorridos, trilhados, três anos e meio, aproximadamente, sinto-me cansado e já pensando em me aposentar.
O problema é que não tenho vontade própria e dependo da minha “ Bela Dona " para tal.
Meu couro que, outrora, viçoso fora, hoje, já não o é.
Mesmo velhinho e desbotado ainda sirvo se Ela quiser me calçar para ir ter com os seus.
Não a decepciono nunca.
Se hoje já não sou mais tão utilizado, não me entristeço.
Pois de nossa lúdica relação, ficou toda cumplicidade e memórias de alcovas que jamais revelarei a meus antigos amigos de prateleiras.
Se a fidelidade, por três consecutivos anos, recebi dos belos pés de minha Dona, meu silêncio, suas prevaricações, fielmente, o terá.