PROFESSOR APAIXONADO

Já passara uma semana do início do ano letivo e eu ainda não conhecia a turma 32. Entrei na sala tentando aparentar segurança, para que não percebessem meu nervosismo. Eu sempre ficava nervoso no primeiro dia de aula, não obstante os vinte anos já passados desde o dia em que decidi trocar a carreira militar pelo magistério.

A sala estava repleta de alunas silenciosas à minha espera. Na lista fornecida pela secretaria havia trinta e cinco nomes, todos femininos. A curiosidade transparecia no olhar de cada uma. Cumprimentei-as, apresentei-me e sugeri que também fizessem o mesmo. Todas se apresentaram, algumas bastante tímidas e eu quis saber mais: Pedi que falassem sobre as razões pelas quais se matricularam num curso para formação de professoras. Satisfeito com o que ouvira e já mais seguro, informei-lhes que aquele dia era apenas para nos conhecermos.

Na aula seguinte, dois dias depois, eu já era dono da situação e elas também: perguntavam, questionavam, riam, trocavam ideias entre si, salvo raras exceções, porque sempre há aquelas que nunca se manifestam.

O tempo passava e tudo estava indo muito bem. A relação professor/alunas era ótima, como sempre fora. Eu amava minha profissão e sempre falava com os alunos olhando-os nos olhos. De repente, porém, não lembro exatamente quantas aulas depois, nossos olhares se cruzaram. Aquele par de belos olhos azuis faiscavam, fixos em mim, e eu ainda nem os havia percebido, tão envolvido estava com o contexto. Tentei fazer de conta que não os vira, disfarcei, fixei-me no tema, olhei para outra direção, mas não adiantou, eles estavam lá e me atraíam. O sinal bateu e eu saí um tanto confuso, meio chateado. Como era a última aula, fui direto para casa, caminhando. O trajeto era relativamente longo, todavia nem me dei conta de como foi que cheguei. Nem percebi a caminhada. Aquele olhar estava indelével em minha retina.

À noite sonhei com os olhos azuis. Pela manhã, acordei-me pensando neles. Mas, e ela, a dona deles, como seria?

Durante todo esse tempo no exercício do magistério, recebi, de alunas, muitos tipos de olhares. Nenhum, porém, jamais chegou a me tirar do sério. Um profissional íntegro, cônscio de suas responsabilidades, de acordo com minhas concepções, não se envolveria com alunas, consequentemente, não se perturbaria com olhares outros.

Por esses tempos, tinha-me na conta de um velho lobo solitário, que vivia muito bem em sua própria companhia. Envolvimento afetivo, que me empurrasse para algo mais sério, estava fora de cogitação. Já havia me prometido solenemente, não sei quantas vezes, que jamais voltaria a me apaixonar. Esse tempo estava encerrado. Aquele olhar, no entanto, estava entranhado em mim, na minha pele, na minha alma, no corpo inteiro; contrariamente, constrangendo-me a sonhar.

Como meus horários de trabalho eram à tarde e à noite, passei a manhã assim, meio perdido em devaneios, mas acima de tudo, buscando coragem para voltar àquela turma, que seria no período noturno. Ao meio dia já havia tomado uma decisão: voltaria resoluto, como se tudo não passara de um simples olhar. E pronto! Seria como sempre fora, firme em minhas decisões, tinha certeza!

Tudo bem, adentrei à sala despreocupado, cumprimentei a turma e tentei ser fiel à decisão, mas não deu. Ela estava lá e me olhava. Encarei-a. Olhei para além dos olhos azuis e a vi como um todo. Linda! Loira! De cabelos longos, cacheados, encantadora! Assim era Sônia!

Tremi!

Durantes os próximos dias, sonhei com ela. Não via a hora de voltar a sua turma, só para vê-la. Sentia seu olhar me flechando e fingia nada perceber.

Não demorou, para que alguma coisa estranha começasse a mexer com minhas convicções e ela passou a fazer parte de meus sonhos. Demorei, ainda, algumas aulas para lhe dirigir a palavra e quando o fiz, não sabia bem o que dizer. Até hoje, acho que saiu alguma coisa tola, nada a ver com o tema em questão. Ela também tomou coragem, começou a participar ativamente das aulas e a me fazer perguntas.

Ainda tentei dissuadir-me, dizendo para mim mesmo que tudo não passava de uma ilusão; que daqui a pouco tudo voltaria ao normal e pronto! Mas não houve jeito, estava apenas tentando me enganar. Quando a paixão toma de assalto um coração desprevenido, não adianta resistir, ela se apossa e faz nele morada. Indiscreta que é, exibe-se, então, para o mundo, de forma escancarada.

Esforcei-me por ocultá-la de olhares indiscretos, mas não adiantou. Ela era mais forte e se denunciava, teimosa, por meio de toda minha linguagem corporal. Já havia me subjugado.

Em pouco tempo, a suspeita das colegas de turma dera lugar à certeza e maliciavam, faziam brincadeiras, diziam piadinhas. No entanto nada acontecera entre mim e Sônia, ainda, além dos olhares. Nada conversávamos que não fosse sobre assuntos relativos às aulas, mesmo nos intervalos. Minha vontade, por outro lado, era ultrapassar esse limite e expor-me a ela de vez, porém ainda havia muitas dúvidas e receios.

Se, por um lado, minha vontade era entregar-me aos apelos do coração, por outro o receio deixava-me paralisado nas trincheiras da resistência e já começava a sofrer. Até que um dia, criei coragem e ousei: depois de revisar um texto em seu caderno, fiz uma observação a respeito do que escrevera, assinei e anotei o número de meu telefone.

O sinal bateu, denunciando o final do período e eu fui para casa, pensando nas consequências do que acabara de fazer. Estava temeroso, mas também cheio de esperança.

Cheguei em casa, sentei-me e esperei, não muito, porque ela também estava apaixonada e não perdera tempo. Me ligou e não sabia bem o que dizer:

- Acordei o senhor?

- Não, estava aguardando tua ligação.

- Como?! Sabia que eu ia ligar?

- Não sabia, mas esperava e se não me ligasses, ficaria desapontado.

- Foi por isso que colocou o número de seu telefone no meu caderno?

- Foi. Ficaste chateada?

- Não. Até gostei, embora tenha ficado um pouco assustada. A princípio não sabia o que fazer, depois tomei coragem e agora estamos conversando.

Ficamos no telefone mais algum tempo e combinamos que no dia seguinte, depois da aula, conversaríamos mais, no caminho para casa.

Assim foi. À saída, esperei-a e caminhamos lado a lado, por algum tempo, em silêncio. Não sabia como iniciar a conversa, ela também. Assim mesmo, meio sem jeito, tomou a iniciativa:

- O senhor gostaria de saber o que pensei a seu respeito, quando o vi adentrar nossa sala, no primeiro dia de aula?

- Sim, gostaria muito.

- Não vai ficar zangado?

- Claro que não, podes falar.

Ela hesitou por alguns segundos e disse:

- Quando o vi, assim muito sério, com ares de autoritário, de sabe tudo, pensei: “esse professor vai me dar trabalho”.

Dei uma gargalhada, ela também riu. Rimos muito e eu perguntei:

- A opinião continua?

- Não, ela respondeu, enganei-me.

Chegamos em frente ao portão de sua casa, despedimo-nos e nos prometemos continuar no dia seguinte.

Assim aconteceu. Durante muitos dias repetimos o trajeto e à medida em que nos conhecíamos melhor, descobríamos muitas afinidades entre nós, não obstante a diferença significativa de idade. Com o passar do tempo a intimidade ia aumentando e as certezas também, as conversas de morar juntos, de vez em quando surgiam, depois passaram a ser quase diárias. Ela estava com mais pressa que eu. Um dia, dei-lhe uma chave do apartamento e ela perguntou:

- Para quê?

- Já fazes parte de minha vida, respondi e, meu apartamento também é teu. Ficarei muito feliz, se dia desses te encontrar lá, na volta das aulas.

Ela pegou a chave e não falou mais nada a respeito. Naquele mesmo dia, cheguei em casa por volta das 23h, como sempre e a encontrei à minha espera. Levei um susto, não pela presença dela, isso já estava nos meus planos, mas porque junto com ela estava toda a sua mudança. Ela fora para ficar. Claro que tudo o que mais queria, era tê-la junto de mim para sempre; antes, porém, pensava em preparar o terreno. Como ela não me dera tempo, aceitei sem questionar e fiquei feliz. Nossa vida começou a mudar de vez. Agora éramos um casal, não obstante, ainda, professor e aluna.

Conhecemo-nos no início do ano letivo; em novembro, mais precisamente no dia 4, já estávamos morando juntos e tudo virou um mar de rosas à nossa volta. Vivíamos a magia da paixão! Todavia sabíamos muito bem que as diferenças individuais são sempre mais ou menos grandes e que o encantamento da paixão as oculta, apenas. Para um relacionamento afetivo bem-sucedido, é necessário que essas diferenças sejam pelo menos diminuídas, sob pena de tudo acabar, quando, por ventura, a paixão arrefecer. Assim, conscientes, também o amor começou naturalmente a florescer, possibilitando que, além de amantes, fôssemos nos tornando também companheiros e cúmplices. Um ansiando sempre pela companhia do outro.

Hoje, continuamos abertos às mudanças para o aprendizado e dessa forma crescemos. Claro que a vida a dois não é um mar de rosas vinte e quatro horas por dia, os altos e baixos fazem parte do processo e isso é normal; o segredo, no entanto, está em como administrar essas diferenças e superá-las. Se, por vezes, discordamos e discutimos, repensamos a questão, na busca de alternativa e no final sentimo-nos um pouco melhores e mais unidos; um jamais se anula em função do outro, porque somos seres integrais.

Nessa convivência, treze anos já passaram e nossa vida continua um jardim florido. Quando uma rosa murcha e morre, outra desabrocha, porque o jardim de nossa história foi construído em terra fértil, a qual jamais esquecemos de regar.

Estamos felizes!

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 04/06/2016
Reeditado em 01/01/2021
Código do texto: T5657190
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