AMOR ALÉM DA VIDA

"Este texto foi escrito por Sônia, minha esposa, em 2003, durante uma aula de português, cujo tema era a produção de um conto, em um curso de formação para o magistério. Ela era, então, minha aluna".

Meu nome é Maria, sou diarista e tenho quatro filhos: Gustavo, com sete anos; Manoel, com cinco e meio, Gabriela com quatro e Martinha, com três. Meu marido é pedreiro, honesto, trabalhador e me ama muito; sinto isso em cada gesto dele, por menor que seja. Apesar das dificuldades, ele nunca esquece de me fazer um agrado, de me trazer uma pequena lembrança. Sempre trabalhou para os outros, construindo casas e apartamentos, mas estava muito difícil construir nosso cantinho. Durante muitos anos moramos na casa de minha mãe, até pagar o terreno que compramos com muito sacrifício. Depois, montamos um barraquinho e fomos morar nele, simples, mas era nosso.

Minha mãe nunca reclamou por estarmos morando na casa dela, no entanto sabíamos que, quem casa quer casa. Foi assim que conseguimos nosso teto.

Nossa vida continuou a rotina: meu marido levantando todo dia bem cedinho para ir ao trabalho, eu na lavação de roupa para fora e fazendo faxina na vizinhança. Minha vizinha Júlia cuidava de meus filhos para que eu pudesse trabalhar; em troca, fazia faxina aos sábados na casa dela. Á noite, embora cansados do trabalho, continuávamos parceiros e cúmplices: ele ajudava as crianças nas tarefas escolares, brincava com elas, providenciava o banho para todos e eu fazia a comida. Deixávamos tudo pronto para o dia seguinte. Ah, nunca esquecíamos de fazer amor, afinal, nos amávamos. Embora cansado do trabalho, ele era sempre muito carinhoso. Prometia sempre que um dia nossa situação mudaria, faríamos uma linda casa e nada mais faltaria para as crianças, nem para nós dois. Eu acreditava e sonhava com as realizações. Transmitia segurança a ele, dizendo que tudo estava bem, que era muito feliz a seu lado, que o amava muito e que nossos filhos tinham saúde, eram felizes, educados e inteligentes. Não nos faltava nada.

Ai de mim! Tão feliz, tão confiante em nós e em Deus, nem de longe suspeitava que uma nuvem densa e escura estava por cobrir o sol de nossos sonhos. Às 10h de um daqueles dias lindos, que enchiam nossas vidas, minha vizinha chegou ao meu trabalho, correndo, transtornada, com a voz embargada na garganta. Toquei em seu braço e pedi que ficasse calma e falasse, porque eu estava ficando preocupada. Perguntei por meus filhos, quis saber se estavam bem. Com dificuldade ela acabou dizendo que com as crianças estava tudo certo. Senti-me aliviada, por pouco tempo, porém. Era meu marido, ele acabara de morrer. Júlia estava tão nervosa que nem conseguiu suavizar a carga da triste notícia e despejou-a como um raio sobre minha cabeça. O choque foi intenso, entrei em desespero, perdi a noção de tudo e chorei inconsolavelmente. Queria ver meu marido. Meu rosto deixava transparecer dor e sofrimento. Quando cheguei ao local do trabalho dele, seus colegas me informaram que o corpo fora levado para o IML do hospital, para os exames de praxe. Perdi as forças e desmaiei. Recobrei os sentidos numa cama que me pareceu de hospital. Minha amiga, que não me deixara, perguntou-me como estava. Confusa e tonta, respondi, mas, então, veio a lembrança da triste realidade: sonhos e esperanças construídos com tanta luta, amor e persistência e, de repente, tudo acabado. Meu Deus, que faria agora? Que seria de mim e de meus filhos?

Minha amiga foi quem cuidou de toda a burocracia do velório.

Já em minha casa, depois de muitos sedativos, tive condições de avaliar com maior clareza o tamanho da tragédia que se abatera sobre minha vida e voltei a chorar amargamente.

Depois de alguns anos de luta árdua e incansável, ainda corroída pela dor da saudade, um dia quando descansava em meu quarto, sozinha, perdida em pensamentos, comecei a passar em revista os momentos pelos quais juntos passamos. Lembrei-me de nossas promessas... e sonhos; dos sonhos lindos que nos diziam tantas coisas e nos motivavam... de nossas juras de amor. Assim, enlevada, de repente comecei a sentir uma presença suave e boa, de paz e, como num passe de mágica, ali estava ele, meu marido, lindo como nunca, todo de branco, acompanhado por dois homens, também de branco, cada um de um lado.

Não era necessário falar, apenas nos olhávamos e assim nos entendíamos. Ele pensava e eu entendia. Com doçura inexprimível e com aquele olhar que traduzia um carinho imenso, ele disse em pensamento para eu ser forte e corajosa; que não desistisse da luta; da concretização dos sonhos que juntos sonháramos e dessa forma criasse nossos filhos, para que eles também soubessem construir um caminho de retidão e assim fossem felizes, como fôramos. Disse que um dia voltaríamos a nos encontrar e que ele estaria sempre por perto, olhando por mim e por nossos filhos, se lhe fosse permitido.

Antes de partir, acrescentou que jamais me esqueceria.

O tempo corria e não raro eu imergia nos pensamentos, nos quais me refugiava, sempre à espera de mais uma visita daquele a quem amava.

Um dia, imersa num desses enlevos, senti tocarem-me levemente o braço: eram meus filhos, avisando-me que já estavam a caminho da faculdade. Voltei à realidade, vi minhas crianças já moços e custei a acreditar que, desde aquele dia fatídico, quinze anos passaram.

Tenho certeza de que João, esse é o nome de meu marido, assim como eu, sente-se orgulhoso de nossos filhos que trabalham e estudam para ser alguém na vida.

Estou quinze anos mais velha, mas não esqueci meu amor, que nunca me deixou só e, muitas vezes, nas horas de dificuldade, vem me dar uma palavra de ânimo. Ainda o sinto e o amo. É ele que não me deixa desistir. Ainda sonhamos juntos. Por causa dele estou aqui e me sinto uma vencedora. Meus filhos já estão criados, honestos, estudiosos, independentes, unidos, educados, bons cidadãos, bons filhos. Tenho certeza absoluta de que me amam.

Embora fortemente ligada espiritualmente a João, sua presença física me faz falta. Anseio pelo dia em que voltaremos a caminhar de mãos dadas, em algum lugar além desta vida.

MCSobrinho e Sônia
Enviado por MCSobrinho em 18/05/2016
Reeditado em 30/11/2023
Código do texto: T5639627
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