Corações Fendidos
Cada esquina guarda um compasso de passos que se esgrimam. Nos interlocutores, as batidas que agridem o fosso de uma novidade. Nada mais serve ao que se despem diante do da indumentária epidérmica. Muitos mundos virão a cada ato transbordado em cena de mármore. Vejo os olhos fechados em persianas molhadas, que secam diante da claridade de um mínimo sorriso. Já posso imaginar o sentido apenas através das sombras luminosas das lanternas japonesas que navegam no mar de doces sentimentos. Poesia de fazer crer, pela experiência de uma fé conquistada nas beiradas de edifício reduzidos.
Desejando ser Apolo, cada vez mais me torno Dionísio. Claro como o céu nublado de orientações vagas. O voo de um pássaro terrestre, que cisca a grama como se pudesse ruminar todo aquele verde e se consubstanciar em uma espécie de clorofila. O jeito dos tijolos me encantam. Tão certos de si, construindo realidades de barro. As mãos que assentam se sentam sob o rosto que suaviza o solo que lhe faz sonhar. Estrelas se multiplicam na velocidade de órbitas inimagináveis. Cabeças girando com seus chapéus mexicanos, a ponto de suspender o corpo e ver o mundo sob a ótica da rotação. Mexo cada movimento para ter a certeza de não mais parar. Fossilizado seja o último adeus, mantido intacto em algum arquivo que a memória tende a reorganizar.
Meu açude transborda. Inundando um copo de água que só faz transbordar. Mesas aparam os pingos que salpicam e esparram perante um jantar. Nas trevas de um café quente, o açúcar gruda no fundo da xícara e forma uma película de auréola. Beijos certo em bocas erradas, causam um pequeno constrangimento pela precisão de acertarem bochechas. Suspiros suspensos em balões de ar, chegando a altura que o peito consegue arfar. Tragédias milagrosas engrossam os dilemas mais rasos. A pergunta se a boca de um filósofo retratado algum dia beijara com a intensidade de sua oratória. Ainda que o beijo tenha sido uma invenção que não fez parte do tempo em que muitos viveram. Como puderam viver assim? Como podemos viver assim? Como podemos? Quem disse que vivemos? Vivemos? Podemos?
Quantos traços mal traçados seguem no espaço de um rasgo que não conseguimos preencher. Pulsa como a vida de cada existência anulada. Anil é a cor. Pigmentos que escapam da percepção dos olhos, vociferando expressões na tela de uma arte mal compreendida. De que adianta compreender a arte se ela é feita mais daquilo que criamos a partir do ponto de intercessão entre o que imagino compreender e as infinitas possibilidades do que seria presumível ou não conceber? Mesmo assim, faço. Penso, logo minto. Desde o início da Gênese, com folhas que buscam cobrir esse sexo. O coito, esse impulso que dá vida, que também a coíbe, num jogo de ser ou não ser, sem nenhuma questão. Anjos despencam cada vez mais das luminárias, chocando-se contra o solo áspero, forçados a seguir a violência da gravidade, que é grave em sua performance magnífica.
Breves greves devem servir aos leques que abanam as brasas das grandes revoluções. Rotações causam aquele estado de náusea que conduz todo aquele que se apega ao tempo, a ponto de se escravizar em uma circular, impedido de extravasar pelas dobras. O giro que afeta o Cupido, fazendo com que a flecha venha no fim a lhe picar. Bate mais forte, vibrando como o surdo da escola de samba, em um ímpeto de ousadia brutal, que faz com que o mesmo seja sentido com a emoção do novo, disfarçando a alquimia do velho, que transmuta a cada despertar. Tons sobre tons, numa mescla de nada com coisa nenhuma. Fogueira de eletricidade remota, eletrocutando peitos desfalecidos. Emoções filtradas por filtro de barros. Quem sabe tijolos expostos, esperando o concreto que empareda. Louças quebradas não precisam ser lavadas. Cada rosto é um esgoto a céu aberto, desejando ser tratado, antes de poder contaminar o próximo afluente, na fluência de palavras escarradas.
Uma chance é aquela oportunidade de dizer que participou de algo. O escolhido precisa primeiro se enxergar. A escolha de si é o reconhecimento da própria ausência. Próxima a cascata parece devorar a rocha, atropelando o rio. Fúria de lamúrias de uma tragédia grega sem máscaras. Louco é aquele que não tem rosto, como o palhaço que se serve da pintura ou deus que se faz sobre as escrituras. Liberdade é enlouquecer sem se alienar. Livres? Todos buscam esse prazer. O morto é o mais próximo de um livre. Encerrado. Nulo. Esquecido. Liberdade é não mais ser lembrado. O pesadelo é um sonho indesejado. Mas os sonhos nos desejam. Todo desejo é um sonho. Sonhos evocam desejos. Beija com a alma se fores capaz.