Onírico Blues - de Raul Franco
Ele pensava: “Ilógico é sentir como há dez anos. Pra quê? Por quê?”. E olhava em volta: a mesma praia de Ipanema; as mesmas pedras do Arpoador. E o silêncio de um coração vazio.
Era sexta-feira. Ouvia-se ao longe um blues qualquer. Podia ser Janis Joplin. Ou mesmo Edith Piaf. “Mas Edith cantava blues?”, pensou. Então, era mesmo Janis. Seria Cry Baby? Kosmic Blues? Sabe-se lá. O que importa é que era a mesma voz rasgada. A mesma aflição despejada em gritos como forma de acordar a dor. A dele, talvez. Sempre desperta ao se ver do alto das pedras. Dor doida para pular no mar de Ipanema e sumir como peixe safo, evitando os anzóis traiçoeiros. Ele queria que fosse simples assim. Mas sabia que, às vezes, tudo fugia ao seu controle. Sentia vontade de gritar. Não gritava. Dentro dele um vulcão era adormecido contra a sua vontade. E isso, com certeza, lhe traria mais noites sem sono.
Onde ela estaria? Em qual rua, em qual beco? Em qual ponta de areia? Será que sabe dele pousado naquela pedra como uma estátua perdida? Esquecida?
Ele se via só: um sol ofuscado pelas nuvens cinzas pousadas em sua cabeça. Tanto peso. O peso de uma vida. Dez anos! O que comemorar? O que pensar naquelas tardes que poderiam ser perfeitas?
“Eu te amo”, ela disse uma vez. No mesmo cenário. As pedras do Arpoador pareciam pequenos brinquedos nas tardes velozes em que esse amor fluía. Juntos, escalavam as pedras até chegar ao alto para realizar um beijo cinematográfico, enquanto um helicóptero deslizava pelo céu. “Vamos fugir nesse helicóptero?”, ela brincava. E logo imaginavam uma escada de cordas grossas descendo no ar, e eles subindo cuidadosamente. Sumindo numa estrada de nuvens turvas. Nada importava. Havia amor e o desejo de transcender.
Agora ele acumula silêncios. “Quantos silêncios são necessários para compor um vazio completo?”, ele indaga. De repente, um pequeno barulho de uma gota de lágrima caindo na pedra. Um leve tilintar, só ouvido por ele. E o olhar fixo na gota logo tragada pelo sol quente. Mais um pouco e poderia germinar alguma coisa. Talvez, a indiferença.
O mar continua no seu constante movimento. Ele observa. E o vento brinca nos seus cabelos, revelando os brancos que, até então, escondiam-se na vasta cabeleira. “Quando nasceram?”, ele se pergunta, mas, é claro, sem esperar uma resposta precisa.
Sentia-se envelhecendo com a mesma dor de dez anos. Quisera pular do alto das pedras no fundo do mar. Mas poderia flutuar, salvo pelos dedos de Deus. Então, de nada adiantaria tamanha ousadia.
Aí, veio a ideia: ele saca do fundo do bolso um papel. E com caneta em punho, ele pensa em decifrar as coisas que passaram. Sim. Escrever como antes. Como nunca pudera novamente fazer. Romper o travamento. Escrever e proclamar um outro entendimento.
Ele começa a escrever como quem realiza uma oração: o papel deitado nas coxas e a escrita rápida, instantânea, quase psicográfica: “Se o mar fosse o mesmo, sempre... se ele não se movimentasse, fosse apenas água parada, para o qual os olhos se voltam, sem espanto, eu também estaria intacto, o mesmo de antes, amando desesperadamente a tua pessoa”. E os dedos continuavam correndo pelo papel, como se buscassem a leveza de um novo existir. Sem saber se aquilo era literatura ou uma mentira em que ele queria acreditar, ele prosseguia com as suas letras tortas: “Mas sabemos que o mar está em movimento, às vezes inventando ondas que se quebram e beijam os nossos pés parados. É esse movimento que nos afasta. Eu tento te alcançar, saber de ti, mas há tantas águas nos separando que mal posso te enxergar, te salvar de um possível afogamento”.
Ele respira e olha um barco passando como se levasse uma promessa de futuro, sabe lá pra onde. Ele vê o barco, enquanto enrola o papel e o coloca dentro de uma garrafa de smirnoff ice que estava ao seu lado. Como que lembrando de um filme antigo, ele a lança no mar. A garrafa cai e flutua. Agora navegará na velocidade do esquecimento.
Ele desce das pedras e caminha pela areia até tocar com os pés o mar. E anseia para que o mar lamba sua ferida. E que o sal ajude a cicatrizar mais rápido.
O mar já anuncia um novo movimento. E no coração, a pulsação explícita da existência.
Ele pára e olha profundamente a linha do horizonte. E eis que aparece a mulher de branco (figura lendária de Ipanema, de família rica, que, dizem, enlouqueceu depois que foi deixada pelo marido e, desde então, caminha pelo bairro, vestindo sempre branco). Ela toca o seu ombro. E num gesto de lucidez ou loucura, diz-lhe calmamente: “Ela não voltará. Desista. Eu já enlouqueci por amor. Você ainda tem chance”. E silenciosamente se retira, arrastando um véu branco pela areia, como que desenhando um rastro de adeus. Ele, com olhar perplexo, não entende como a mulher de branco conseguiu decifrá-lo de tal modo que, agora, ele se sente desarmado, já que sua dor foi profundamente evidenciada, como se fosse uma mercadoria na vitrine, pronta para ser consumida pelos olhos.
Ele, então, resolve voltar pra casa. Retirar-se do cenário tão familiar para ele e o seu amor. E vai caminhando, caminhando, caminhando... até ser um ponto distante aos olhos de quem está na praia. E do outro lado do mar, ela, a mulher que ele tanto esperara, nada descoordenamente, segurando a mensagem engarrafada. Mas, ela mal sabe que jamais chegará tão perto das pedras onde ele esteve.