Clarividências
CLARIVIDÊNCIAS
Veio súbita a necessidade de colocar o cotidiano numa redoma que o protegesse da cegueira. Tudo tão inesperado, um langor a desarmá-la de toda a pressa dos saltos, em ágil rumor pelas calçadas.
Carros, bicicletas, pessoas, correrias, tagarelices, sorrisos, sinais de tristeza, cansaço, irritação e indiferença: era a cidade no entardecer.
Surpreendeu-se emaranhada numa estranheza de si mesma, em inusitado anseio de uma benfazeja experiência de reencontro e lassidão. O passo ligeiro foi arrefecendo.
Junto à cabeceira da Ponte Nereu Ramos, encontrou a pracinha. Era a Praça Centenário, que a singeleza do povo batizara com o nome de Praça do Chafariz.
Lembrou o chafariz antigo. Ele dera lugar a outro, de linhas modernas, agora uma fonte onde a água em cascatas, fluía e refluía, num incansável acalanto.
Viu as árvores e os bancos que também ali estavam. Olhou tudo, em lenta contemplação, com olhos de quem busca, ainda sem saber o quê. Em que momento o rumor dos saltos se calara? Veio o medo daquela estranheza de si mesma.
Cessados os passos, Maria Flor teve a intuição de um convite para sentar-se. Delicadezas dos bancos, aconchegos das árvores. Pressentiu que iria aventurar-se ao encontro de uma clarividência sobre o cotidiano, sobre a rotina, carregada como um fardo.
Sentiu-se perplexa, de olhos vendados, medrosa do futuro, num patético e laborioso afã de garantias para o amanhã, que talvez nem viesse a ser...
Projetos, metas que precisava atingir... Esbaforir-se em atividades e artimanhas para disfarçar a velhice... Amontoar bens, o legado de uma herança confortável para os descendentes ...
Mas, envelheceria? Quanto? Que tempo lhe seria dado ainda? Lembrou o Eclesiastes: Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus: tempo para nascer, e tempo para morrer...”
E lembrou também a ternura de Jesus, quando serenou os que o ouviam : Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros... E pelo que haveis de vestir, por que andais ansiosos? Olhai para os lírios do campo, como crescem; não trabalham, nem fiam....
Uma cantoria de pardais fazia festa nas árvores... Olhai para as aves do céu... Olhai para os lírios do campo... Há quanto tempo não prestava atenção à maravilha de pássaros cantando... Não semeiam, não ceifam, não armazenam celeiros...
E os lírios do campo e todas as flores vestidas de beleza, de uma roupagem preciosa , na serenidade de existir, de dar-se à contemplação ... Nem se lembrava da última vez em que prestara atenção a uma flor, ela, a Maria Flor ...
Clarividência de que os “tesouros da terra”, com certeza, não eram a melhor herança...
Levantou-se e, com a sensação de que flutuava, tal a leveza dos passos, caminhou de árvore em árvore, acariciando ramagens. Foi o reencontro com uma experiência quase esquecida de ternuras, de amorosas trocas.
Voltou a sentar-se. Fechou os olhos. Os pássaros se esmeravam na cantoria. Concerto inebriante no cenário da Cidade Azul. Mas existe um tempo de gorjeios e outro de quietude. Então, aos poucos , sem esperar aplausos, os cantores foram silenciando. Era tempo de adormecer, sem glamour.
No aconchego das folhas, cada pardal encontrara seu ninho. Cada árvore fora um palco. Agora, era um refúgio. Tudo parecia essencial, um despojamento que não armazena celeiros, tesouros da terra.
Era a clarividência das verdades encontradas naquele alvoroço de gorjeios, numa das mais belas cenas urbanas de Tubarão, quando uma sinfonia de pássaros singelos brindava a noite estava a chegar....
Maria Flor quis retomar os passos. Impossível. O que viu era extasiante: ao sol poente, as árvores ribeirinhas consumiam-se em labaredas, num incêndio a alastrar-se sobre as águas do rio. Há quanto tempo não contemplava o crepúsculo?
Voltou à Praça, sentou-se num lugar de onde pudesse ver o rio, as árvores, as montanhas, tudo em chamas.. E ali ficou. Saboreava o fascínio daquela hora de cores flamejantes em mutação ...
Impregnada da luz poente, fechou os olhos e deixou que a alma navegasse nas águas do sonho. Uma canoa e um canoeiro antigos levaram-na ao encontro do crepúsculo. O canoeiro remava, ferindo as labaredas derramadas sobre o rio, e elas se transformavam em rosas.
Na canoa, Maria Flor conheceu a leveza perfumada das pétalas e se esqueceu dos espinhos. Entregou-se ao encantamento de carícias perdidas no tempo. Foi quando viu, entre tantas outras, a rosa azul, a desejada desde tempos imemoriais.
Alcançara a clarividência de sua busca: o azul... No sonho, agora, era a menina sentada na grama de um jardim qualquer, debaixo de um céu muito azul, o mesmo que o poeta Virgílio Várzea vira derramar-se sobre as águas do rio Tubarão.
No jardim não havia uma rosa azul, mas canteiros de miosótis, infinitos, tomando conta das praças, das avenidas, dos jardins... O azul, sempre o azul...
Quando Maria Flor acordou, as primeiras estrelas já estavam no céu, e uma lua serena caminhava no espaço, sem pressa ... Sem rumor afobado de saltos...
Um seresteiro cantava: Lua, manda tua luz prateada despertar a minha amada... A moça que ele amava abriu a janela, num dos edifícios ali perto, e o rapaz apaixonado jogou rosas...
Uma das rosas caiu na calçada e ali ficou esquecida, em branca displicência...
Maria Flor atravessou a rua, juntou as mãos em concha e nelas guardou a rosa, como quem guarda uma pérola. Entendeu a desnecessidade daquela flor, para o bem-querer daqueles enamorados...
Voltou a caminhar, rarefeita, a alma clara como o luar. Mais uma vez lembrou: os lírios do campo, que não tecem, nem fiam ...
Ela, porém, era fiandeira de sonhos. Alguns tão pequenos. Outros audaciosos, desafiadores. Mas, em todos eles, enredos de felicidade ...
E no tear dos sonhos, a Cidade Azul e a felicidade do povo tubaronense também iam sendo tecidas, na clarividência da Justiça, da Verdade, da Paz ...
Maria Felomena Souza Espíndola