Laços
Por um momento Carlos achou que não podia ser verdade.
Fazia quase 30 minutos que aquela mulher estava ali falando e falando, mil coisas, abusando de injúrias, reduzindo seus argumentos a cacos de vidro, com o olhar fixo e pulsante, de um negror sem igual.
Não conseguia compreender em toda sua confusão mental o porque que tudo havia chegado a esse ponto. Lembranças tomavam sua mente e inundavam seu coração de saudade e tristeza, como se alguém que ele amasse tivesse morrido ali, bem na sua frente, diante de seus braços. Quase cinco anos em sua vida não faziam o menor sentido desde que a ultima hora virou, desde que ela entrara batendo a porta e, levantando o dedo para o seu rosto, começara a blasfemar.
Sabia que era obra pura do exagero mental, da cega certeza que temos quando sentimos ódio e indignação, quando sentimos que fomos traídos ou passados pra trás, o medo descomunal que surge da sensação de um erro profundo na vida.
A razão, a verdade, a sobriedade agora eram meros coadjuvantes em um circo onde somente a dor, a tristeza e o sofrimento importavam. Já não havia mais cura.
Uma hora já se passava e Carlos suportava calado o discurso interminável daquela criatura a sua frente. Olhava em volta, as palavras proferidas pela fera já entrando e saindo de seus ouvidos indiscriminadamente, e via somente coisas perecíveis.Um sofá, uma TV, um aparelho de DVD, boxes com discos de DVD jogados no chão, um tapete, o piso nú de madeira, uma mesa de centro com revistas espalhadas em sua superfície, uma xícara com café pela meta.. tornou a olhar para as revistas. Duas ou três com desgraças nas capas, uma com a protagonista da última novela das 9 em uma pose irretocável confessando que nunca tinha feito dieta, outra com uma foto de uma criança gravemente ferida na guerra que acabara de estourar na Coréia do Norte, uma com ofensas veladas a algum político envolvido no último escândalo de desvio de verbas públicas, outro com a última descoberta inútil da ciência comportamental, outra…
Tudo descartável, tudo perecível, tudo passageiro. A beleza, a morte, a verdade, o conhecimento.
A vida acontece sem se preocupar com qualquer um desses termos. Ela gira, o tempo assopra forte o castelo de cartas e ele se desfaz. E então o remontamos, com alegrias e sofrimentos, momentos e decepções, lagrimas e sorrisos.
Voltou para si. Ergueu o rosto e olhou-a de frente, ela ainda falava. Já não havia confusão em sua mente nem sequer sofrimento, somente certeza. Tinha certeza da incerteza que corria da falsa razão daquele ser. Tinha certeza da eterna incerteza que rodeava a vida e que agora se erguia a sua frente como o mais belo dos dragões, implacável. Tinha certeza que era a hora de mudar.
Sem qualquer sinal de hesitação virou-se de costas, olhou para a porta de saída, colocou um sorriso no rosto e foi.
Atrás dele jazia perplexa Ana, agora calada ao subito sinal que o laço enfim se rompera.
A incerteza a dominava, e era lancinante.