Uvas Passas
Uvas Passas
Joana Prado Medeiros
Domingo à tarde, hora morna, lenta e imprecisa, pode tanto ser quatro quanto seis horas. Tudo parece tornar-se triste, nostálgico. A pia da cozinha coberta de louças, refletindo o almoço em família. Que bom que hoje tudo ocorreu em paz, a irmã rindo para o irmão. Ele, cansado e contente, esteve à manhã toda lustrando o carro e a mocinha dormindo depois do baile de sábado. Ela, a mãe, dormira até mais tarde, contudo levantou-se a tempo de ir à feira, e depois de tomar chimarrão com a amiga.
Mas algo estava diferente, particularmente neste domingo, surpreendeu-se por inúmeras vezes olhando-se no espelho, observando a necessidade de pintar novamente o cabelo, a sobrancelha por fazer, uma pintinha aqui outra acolá, uma ruguinha aqui outra bem ali, a boca um pouco caída sustenta o olhar de quase 50 anos de olhares, de repente vem à lembrança aquela buzina: um curto, um longo e um curto, ou melhor, um bip curto, um bip longo e um bip curto novamente... Como os olhos brilhavam. Era ele chegando, passando em sua rua de uma esquina a outra, e antes de voltar, lá estava ela no portão, com o sorriso grande e o coração saltando pela boca, primeiro amor de seus vinte anos.
Iam então passear de carro e ouvir antigas canções italianas que faziam parte do mundo dele. Ele, um baixinho de riso largo, quarentão dono de um olhar quase vencido, velho demais para ela, mas que nada, o amor não tem idade. E contra tudo e contra todos eles seguiam o sonho de um amor possível.
E foram tantas macarronadas e vinhos, tantas promessas entre suspiros e ais, que este amor sobreviveu o tempo suficiente para torna-se inesquecível, ela questiona: quanto dura algo para cristalizar-se? Não, ela não sabe, pouco importa, sabe o que sente. Como explicar? 27 anos se passaram e ainda sabe cada música daquelas velhas fitas tocadas no carro, são lembradas de tal maneira que ainda sabe a próxima canção que virá. Aos domingos à tarde, eles percorriam uma estradinha entre uma vila e outra, ela recorda-se do que diziam, dos gestos, do sol ardendo nos braços, de como estava o céu, das roupas que usavam do comentário dele quando terminava a música deles, cantavam juntos e depois riam ao sabor do Amore mio per te, do suor escorrendo no corpo, ardendo os olhos depois do amor abafado e rápido, do coração flechado com o nome dos dois, desenhado no vidro embaçado do carro.
Ele prometia: domingo às quatorze horas te pego, na maioria das vezes ela esperava mexendo as mãos e olhando as unhas, cheirando alfazema.
Usando um vestidinho de algodão cru e sandálias de couro, totalmente menina, esperava, esperava, e quanto mais ele demorava, mais ela esperava; quando enfim ele chegava, eram quase dezessete horas: estivera dormindo.
Pois sabia que ela esperaria por ele, ultrapassando a hora que ela teria que voltar para casa, sem se preocupar com o seu desespero ao enfrentar o castigo severo da mãe.
Era sempre assim, o querer era só dele, a hora e o saber era só dele, sua vida era dele; porém, um dia, ela sentiu um tremor, um desejo ligeiro de liberdade, algo brotou e não teve jeito de ser abafado. A vontade de estudar e trabalhar, construir algo de seu nasceu torta, mas nasceu de tal jeito que, apesar de tanto amor venceu e ela fugiu de seu italiano.
Apertou nos seios o amor e as canções, o ciúme dele, as proibições e fugiu para o desconhecido; já naquele tempo tinha uma vaga ideia de que sua vida seria assim traçada: antes dele e depois dele...
Hoje tem certeza. Tantas experiências, em cada vida vivida um pouquinho dele, em cada amor o amor dele, a busca constante de seu sabor, a eterna procura do seu abraço, do seu olhar de aprovação, em cada multidão à procura de seu rosto e, lentamente, o mito foi elaborado enquanto a vida rapidamente era vivida.
Casou-se, fora fiel, feliz e infeliz; como dizer? Viveu o matrimônio semelhante a todo mundo, ou melhor, dizendo: igual andar de bicicleta vai-se empurrando, e chegou um dia ficou sozinha, agora viúva, com os filhos para terminar de criar. O menino noivo e a menina começando a dar trabalho.
Ela naquela idade terrível, nem velha e nem nova, quer um namorado e ao mesmo tempo não quer, vai à igreja, reza o terço da misericórdia dia sim dia não, faz novenas para a filha arranjar emprego e um bom marido, divide os dias entre o trabalho, igreja e os filhos.
De vez enquanto, veste-se de vermelho, ajeita os seios, prende os cabelos e perfuma seus sonhos e no domingo à tarde escapa para o baile da terceira idade e seus sonhos dançam embalados pela ilusão de um devir feliz, de ainda sentir o ardor de uma barba por fazer queimando o seu rosto, arrebatando o seu coração aflito entre a reza e as obrigações de mãe de família e o baile.
E ainda para completar a imperiosa necessidade de ver um bom filme, assistir àquela entrevista especial, ler o jornal, sentir-se culta e informada. Pelos deuses, ela quer e precisa ao menos um pouquinho de brincadeiras, por vezes palavras obscenas, conversas picantes com as amigas, deboches bobos enquanto corrigem as inúmeras provas dos alunos, e a cabeça a mil, faltando apenas cinco meses para a defesa de sua dissertação. Loucura, mil vezes loucura, fazer o mestrado assim entre lágrimas e tanto trabalho.
Mas em meio a tudo isso, a lembrança dele constitui a sua saudade mais profunda e permanente. Ela guarda carinhosamente, como uvas passas, o sabor de seus beijos, os diversos e imaginados momentos de amor; os mais bonitos são sempre ao lado dele, o seu bem amado italiano, que agora, em um barquinho sob a luz do crepúsculo, somente a silhueta de uma cabeça, rema a favor da correnteza do tempo em um lindo lago azul.
Mamãe, mamãe levanta desse computador, o papai chegou. Ela cansada responde: espere só mais um pouquinho. O maridão chega lhe da um selinho e vai brincar com a filha de cinco anos. Na hora do jantar, eles conversam barulhentos e felizes; ela está contente, diz: terminei o meu conto, acho que ficou bom...
E seus olhos jovens, distantes, perdem-se em devaneios, imaginando o seu amanhã, enquanto os seus dedos navegam nas contas do colar de pérolas que contam tantas estórias de tantos personagens femininos de sua família, das mulheres guerreiras, sentidas, vividas, refletidas, sempre reflorindo em busca de si mesmas, o colar italiano em suas mãos, sorri sem medo, o sol poente colorido um dia lhe espera.
Primavera -2009- Dourados – MS - Brasil