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As contas do meu colar: minha trajetória intelectual
Joana Prado Medeiros
Todo ponto de vista é a vista de um ponto, assim como ler significa compreender e interpretar a partir do lugar social em que se vive. Lembrando Paulo Freire, o meu ponto de vista é dos “excluídos” e, enquanto educadora e cidadã, tenho a imprescindível tarefa de denunciar a ideologia dominante. Sonho com um processo educativo em que o diálogo sela o ato de aprender e somente quem tem fome de aprender sabe ensinar. No final de 1975, terminei o curso de magistério. E, no ano seguinte, comecei minha carreira de professora primária, sendo que somente em 1984 passei a lecionar história para o antigo 1º e 2º graus. Vale ressaltar que toda a minha formação do ensino fundamental deu-se em escola de orientação Franciscana, pois estudei na escola Imaculada Conceição. Durante os anos de repressão militar, a história era vista como uma disciplina capaz de formar autênticos patriotas e, posteriormente, uma disciplina destinada a desenvolver pessoas conscientes de seus direitos e deveres políticos. Iniciei o curso de História, licenciatura plena, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Dourados, anteriormente Centro Universitário de Dourados (CEUD), na década de 70, mas consegui concluí-lo nos anos 90.  Vivenciei, assim, o universo acadêmico dos tempos do AI-5, da lei complementar “477”, que proibia as manifestações universitárias, até os tempos do “fora Collor”.
No fim dos anos 80, quando reiniciei o curso para finalmente concluí-lo, já “marxista de carteirinha”, defrontei-me com a história dos vencidos, de maneira que, entre o tempo do relógio e o dos vencidos fui mesclando o camponês ao claro da lua de José de Souza Martins, sem nunca deixar de sentir os pés no chão com dois historiadores da historiografia inglesa:  Eric Hobsbawm e Edward P. Thompson. Este último me ensinou a romper com os estreitos limites do determinismo econômico, mostrando que não existe desenvolvimento econômico sem desenvolvimento também cultural.
Crendo que iniciara tardiamente meus primeiros contatos com a escola dos Annales e da História Nova, resolvi correr atrás do prejuízo. Assim, voltei ao curso de graduação como aluna ouvinte em 1993, isto por compreender a necessidade de preencher lacunas, uma vez que não tinha feito duas disciplinas que considero básicas: Historiografia e Teorias da História. Neste período li, apaixonadamente, Fernand Braudel, Michel Foucault e Michel Volvelle, Roger Chartier, Pierre Bourdieu, Carlo Ginzburg e tantos outros.
Nos anos seguintes, não me afastei da faculdade, sempre buscando novas leituras. Em 1994 e 95, matriculei-me como aluna especial em Teoria da Literatura no curso de Letras. Ali conheci alguns autores importantes, tais como: Ludwig Wittgenstein, Mikhail Bakhtin, Roland Barthes, entre outros.
 Devo ressaltar que, desde muito cedo, desenvolvi o hábito da leitura. Quando eu tinha apenas treze anos, meu pai, o senhor Pedro Medeiros, fez uma viagem a Londrina (PR) e trouxe para mim um livro que guardo carinhosamente na lembrança e na estante: trata-se da obra Antologia Escolar Portuguesa, organizado por Marques Rebelo, da Academia Brasileira de Letras, distribuído pela Fundação Nacional de Material Escolar – FENAME, em 1970. Lembro-me que, durante a noite, permanecia longas horas lendo e relendo; fiquei conhecendo Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Mário de Sá Carneiro, Cesário Verde, Augusto Gil, Tomaz Kim, Camilo Castelo Branco, Bocage e Luiz Vaz de Camões. Por volta desta mesma época conheci que o amor é “ fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente...”
Sinto saudades de meu pai recitando Meus oito anos, de Casimiro de Abreu, Via Láctea, de Olavo Bilac, Canção do Exílio, de Gonçalves Dias; e eu ia declamando junto. Durante os anos seguintes continuei amando a poesia e lia e relia Manoel Bandeira: por inúmeras vezes fui e voltei de Pássargada, e a vida de juventude foi sofrida, sentida, vivida. Estiquei minha adolescência até, até não p e aprendi com a Cecília Meireles a me deixar contar e voltar sempre inteira, como a primavera. E amar como Vinicius de Morais enquanto dure, aliás, tema de mesa de barzinho, ouvindo Chico, Caetano, Gil etc.
Acredito seriamente que o hábito de ler me salvou de inúmeras mazelas da minha época de juventude, só não me salvou de ser militante socialista. Contudo, nunca fui ativista, sempre procurei a liberdade de expressão e de leituras; entre tantas, lia Kafka, José Maria Rilke, Thomas Mann, Thomas Bernhard, Camus, e nunca mais fui a mesma depois de Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez. Enfim, não tinha medo de Virgínia Woolf e outros e outras e os brasileiros, Machado de Assis, Jorge Amado Fernando Sabino, Rubem Braga e todos os clássicos brasileiros. Pergunto-me sempre: ora, porque não estudei literatura? Por vezes, sinto-me cansada de tanto indagar, de tanto sentir e olhar o mundo que é tão bonito, colorido e cheio de segredos.
De vez em quando escrevo poesias e contos. O meu primeiro conto, Eros, escrito em 2000, foi publicado pela Revista Arandu. E outro, com o titulo: Um Conto, este eu escrevi para participar de um concurso de contos realizado pela prefeitura de Araçatuba (SP), e estou  aguardando o resultado. Sonho em escrever um livro, cuja temática será as minhas andanças amorosas. Tenho certeza de que este será mais um sonho realizado e um dia estarei no programa do Jô, contando as memórias amorosas de uma mulher da fronteira. Acreditem, existe uma numerosa turma de amigos me incentivando.
Contudo, considero que meu crescimento intelectual ganhou vulto com o curso de Pós-Graduação lato sensu em História, área de concentração História do Brasil, que realizei também na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Dourados, de 1996 a 1998. A partir desses anos de especialização, após a realização de meu primeiro trabalho monográfico: “O Café Nosso de Cada Dia”, as dúvidas tomaram corpo e provocaram a necessidade de novas leituras. Dentre tantos, cito alguns importantes autores da historiografia brasileira, como Francisco Adolfo Varnhagen, Capistrano de Abreu e José Honório Rodrigues. A grande contribuição desses estudos veio a lume, para mim, na medida em que tomei consciência das mudanças registradas no campo cientifico, levando-me à compreensão de que a historiografia, para dar conta do real, multiplica suas perspectivas rumo à aplicação da interdisciplinaridade.
Cabe à educação ultrapassar a mera absorção de conhecimentos parcelares e voltar-se para a compreensão e expressão da complexa rede de situações da realidade humana, traduzida na práxis. Definitivamente, chego à conclusão que, para mim, é maravilhoso ser uma educadora.
Lembro-me de um projeto interdisciplinar que envolveu as áreas de português, história, geografia e educação artística que foi inesquecível para a série em que eu trabalhava. Elaborei-o em conjunto com a disciplina de português, um projeto envolvendo os seguintes temas: Cidadania e meio ambiente.
O projeto: Árvores de Ruas e Ruas de Árvores foi elaborado a partir dos estudos aplicados em sala de aula sobre cidadania e meio ambiente. Cerca de 140 alunos da sétima série do primeiro grau saíram às ruas de Dourados e fotografaram várias espécies de árvores, utilizando o recurso fotográfico como veículo de aprendizagem e conscientização, conseguiram captar a beleza do Ipê Amarelo, a Aroeira, a história da figueira que foi tombada como patrimônio histórico; identificaram espécies como o Jacarandá, Pau-Brasil e outras árvores nativas existentes em Dourados. O projeto desdobrou-se em múltiplas possibilidades; além da conscientização sobre a flora nativa que conseguiu sobreviver na região, suscitou debates sobre a política pública de urbanização, saneamento básico, assim como os cuidados que as próprias árvores requerem, tais como: a manutenção e a coleta de lixo, etc. Levantamos ainda discussões sobre as questões climáticas como as chuvas e as secas. Neste mesmo leque, discutimos a arquitetura das casas, os calçamentos, entre outros. Enfim, para coroar de vez o projeto, realizamos uma grande exposição das fotografias de árvores da cidade no salão de nossa escola: Imaculada Conceição.
A exposição foi belíssima e contou com grande visitação; para nossa surpresa, fomos assunto até de reportagens na TV e no jornal. Foi a primeira vez que fiz uma entrevista para a TV, para o Jornal MS.
 O projeto ganhou outros espaços e fomos convidados para abrilhantar com nossa exposição fotográfica de árvores o saguão da Câmara Municipal, por ocasião das festividades de inauguração da Galeria de Fotos dos Ex-Presidentes da Câmara Municipal. Ganhamos, ainda, uma Moção de Congratulações do Presidente da Câmara daquele ano.
Contudo, o que ganhamos de fato, além da certeza de que nenhum de nossos alunos nunca mais passou por uma árvore indiferentemente, e a certeza de que podemos ir além dos muros dos livros didáticos: além do horizonte existe sempre uma estrela. Esta semente deu frutos e realizamos outro projeto, cujo tema foi a história local: sobre a praça pública. Acredito que o ato de aprender é um leque colorido que balança em cada gesto mil cores e de novo e de novo mil cores...
Consegui ser selecionada na primeira turma de Mestrado do curso de História da UFMS - Campus de Dourados, com área de concentração: História-Região-Identidades. Por ter obtido a melhor nota no exame de seleção, tive o privilégio de ser a única bolsista do CNPq. Por essa razão, com muito pesar, pedi demissão da Escola Imaculada Conceição. Pensei então que iria poder estudar sossegada, ledo engano; os problemas domésticos foram imensos e, antes mesmo de realizar minha defesa, eu estava colocando um forçado término no meu segundo casamento.
Parece que o “tempo do mestrado” costuma ser difícil para todos, e para fazer frente aos meus anseios e tristezas mergulhei na pesquisa e realizei um estudo comparativo: os migrantes/colonos nordestinos e os migrantes/colonos japoneses. Foram dois processos de ocupação da terra, ao Sul mato-grossense, durante a década de 50, com diferentes maneiras de produção e cultivo e relações de trabalho obviamente distintas. Em 2001defendi minha dissertação: “O Eldorado de Dourados: A Colônia dos Baianos e A Colônia Café Porã -1950 a 1960”
 Em fevereiro de 2002, após ter defendido minha dissertação, comecei a dar aulas em um curso de História, na Faculdade de Ponta Porã, uma cidade distante de Dourados, onde moro aproximadamente 120 km. Por dois anos, viajei três noites por semana; era ida e volta muito difícil, mas, como se não bastasse, no ano de 2003 continuei viajando por duas noites para dar aulas no curso de História na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS em Amambaí, cidade de fronteira, fria e distante. Eu saía de Dourados às três da tarde, chegava as dez para as sete horas; na volta, se tudo corresse bem, chegava em casa às duas e meia da madrugada, para, no outro dia cedo, ir dar aulas. No período noturno, trabalho no curso de história na UFMS, Campus de Dourados, o mesmo curso que levei dezessete anos para terminar. Este é mais um desafio que estou quase vencendo.
O sonho do doutorado continua firme: em 2002, ainda encontrei fôlego para viajar todo final de semana para Assis (SP). Como aluna especial do curso de doutorado, fiz um crédito, a disciplina História Cultural, com o professor Milton Carlos Costa. O meu projeto de pesquisa encontra-se em fase de acabamento; tenho como proposta realizar uma prosopografia de alguns dos líderes políticos do Sul do antigo Mato Grosso, principalmente Fernando Correa da Costa, que representava a UDN no Mato Grosso e Filinto Muller líder político cuiabano da década de 50, representante do PSD no estado citado. Contudo as dificuldades são inúmeras, o dinheiro curto e o sonho longo. Por enquanto, eu fico com a pureza das respostas das crianças: “é a vida, é bonita, é bonita e é bonita”.OUTONO DE 2004 - ESTE MEMORIAL FOI PUBLICADO NO SITE 'MUSEU DA PESSOA"-  Dourados-MS –
obs: Há 08 anos sou docente da UNIGRAN- Centro Universitário da Grande Dourados...e o doutorado ainda por concluir é a vida....