A CHAVE MESTRA
(um Conto de Fadas – ou de terror – em oito capítulos)
Prólogo - O Paço dos Afetos.
O coração é uma morada de sonhos e ilusões!
É um enorme paço com um labirinto de salas
Onde habitam os seres objetos de nossos afetos!
Há espaço para uma corte
Numerosa e privilegiada:
Algumas pessoas trancamos,
Muitas expulsamos
E outras livremente transitam
Pelos cômodos abertos
– vivem onde querem!
Mas há determinados cômodos
Trancados, fechados à visitação:
As bibliotecas da sabedoria;
Os escritórios dos segredos,
Com seus pequenos cofres;
Os porões dos instintos;
As masmorras do abandono
E do esquecimento;
Os salões de festas dos afetos
E os aposentos dos desejos!
Para apenas uma pessoa
Dou a áurea Chave Mestra
– não existem cópias –
E essa privilegiada alma
Torna-se do paço a Rainha!
Capítulo I - A Rainha de Copas (Era uma vez...).
Com meu sangue desenhei
Selos de proteção nas portas,
Acessos e janelas de todo o paço,
Valendo-me de antigos ritos
Da Magia da Fidelidade
– magia poderosa
e há muito esquecida!
Na alcova real podia-se ouvir
A lareira sempre a crepitar
Com os fogos intensos do amor,
Aquecendo o leito de deleites!
Por longas horas sentava-se a Rainha
Frente à penteadeira composta
Por dois espelhos à guisa de amplas janelas,
Com luxuosa vista para minha alma!
Neles se via refletida
E se achava bela,
Mas apenas estava
A contemplar minha alma
Gêmea com a sua
– assim ansiava!
Invadindo outros Contos
– como quem invade sonhos –
Perguntava aos espelhos
Se era a mais bela,
E olhando em seus olhos
Eu sempre lhe respondia
Com um sorriso e uma afirmativa,
Mas não me ouvia ou sequer me via,
Nem podia sentir o calor abrasador
De minha constante presença:
Pelos esplêndidos espelhos
Se encontrava hipnotizada
E todo o meu amor ignorava!
Lentamente penteava tristezas e ilusões;
E por longas horas se maquiava,
Sempre retocando e borrando
Ao maquiar sinceridade,
Honestidade e beleza,
Em uma vã tentativa
De aparentar nobreza
E ocultar seu verdadeiro berço!
Capítulo II - Desfilando Soberba: A Deusa dos Afetos!
Muito havia
Para se contemplar em minha alma,
Porém a Rainha apenas conseguia
Ver a si mesma refletida em meus olhos
De forma egoísta e convencida!
Meu amor recendia em cada nicho,
Em cada fresta, e minha presença
Todo o paço iluminava e aquecia,
Mas importância a isso ela não dava
– a plenitude do amor não a interessava,
apenas os esplendores por ele oferecidos!
Ela vestia o manto
Do meu amor e desfilava
De maneira esnobe,
Sentindo-se a Deusa dos Afetos
– ficava se admirando
frente aos espelhos,
coberta de escarlate!
Desfrutava de todas as benesses do amor,
Mas não o queria e não o alimentava
– de tão forte, mesmo assim sobrevivia!
E passou a se apegar
A todo esse luxo
E a temer perdê-lo;
Seu coração nublou-se,
Formando um tempo
Tempestuoso a pretejar
Sua mortiça alma argêntea!
Capítulo III - A Senhora do Destino.
Mal intencionada e desconfiada,
Vasculhou a Rainha os porões,
As masmorras, os escritórios
E todos os aposentos que encontrou,
Mas em nenhum deles havia vida,
Pois só havia pessoas
Nos cômodos destrancados,
E eram pessoas amadas
De formas muito variadas,
Menos da forma que temia!
Deixou intacta, porém,
A biblioteca, desprezando
Os conhecimentos do coração
– a aspirada sabedoria!
Não satisfeita,
Continuou a busca por alguns anos
Sem jamais encontrar aias,
Cortesãs, concubinas, amantes... nada!
Até que a insegurança,
Os temores e a curiosidade cessaram,
E então, convencida de que era a única,
Sentiu-se a senhora do meu destino!
Sob seus cuidados deixei o paço
E com ele não mais me preocupei;
Dei-lhe liberdade para decorá-lo
Como lhe aprouvesse,
E para seu acesso
Controlar como quisesse!
E por muitos anos vivi tempos de paz
E felicidade por ter entregado a posse
Do meu coração a quem mais amava!
Capítulo IV - A Rainha Má!
Um dia se cansou a Rainha
Do luxo do paço, pois nada pôde
Encontrar para a si mesma preencher!
Nem todos os esplendores
Do paço dos afetos foram capazes
De preencher o abismo em sua alma,
Nem o vazio em seu coração,
E então, um dia, atirou ao mármore
A dourada coroa cravejada
De belíssimas gemas
Que cingia sua bronzeada
E abundante cabeleira;
Enfurecidamente
Se dirigiu à saída
Abrindo-a com violência;
E sem olhar para trás
Deixou a minha vida
Com odiosa inconsequência!
Senti o impetuoso vento frio
Do Inverno a invadir o recinto
E comecei a tremer,
Com as lágrimas se cristalizando na tez,
Embelezando o semblante
De sofrimento e desespero
– não pôde o gosto salobro
tocar o amargor dos meus lábios!
Esse foi o prenúncio de algo terrível,
De uma chama que se apagaria,
Do funeral do amor e dos meus dias!
Capítulo V - A Mortalha de Gelo!
Com o paço em avalanche
Sob espessas camadas de gelo,
Qual gélido e oportuno esquife,
A dor do Inverno seus habitantes sentiam,
Mas ideia não tinham
Da dimensão da minha dor ao ver
O trono abandonado e o leito vazio!
Decidido a guardar luto eterno,
As trevas e o frio avançavam
Cada vez mais pelo paço!
Estando em profunda melancolia,
Guardava planos sinistros e tétricos
De abandoná-lo – tirar-lhe a alma!
Agora, inerte e estendido
Sobre a frialdade do pétreo piso,
Sinto-me pluma ao vento,
E sinto o leve toque de uma mortalha
A me acariciar com amargor e aprisionar,
Então entendo que o meu corpo frio
Foi encontrado pelos ínclitos cortesãos!
Passo a ouvir lamentações
Melodiosas vindas de algum lugar!
Por vezes parecem lamúrias,
Por vezes canto fúnebre,
E penso tratar-se
De uma última homenagem
Ou de espectros
A me chamarem para junto de si,
Mas algo dentro de mim desperta
E encontro forças para mover
Assustadoramente a nevada mortalha,
Espantando a todos os presentes
Com um sopro de vida – um suspiro!
Vivo – ainda que uma bruxuleante
e fraca chama – levanto e vejo o terror
Nos olhos de quem não desfaleceu
Ou abandonou espavorido o recinto
– trecho de um Conto de Terror perdido!
Capítulo VI - O Labirinto de Mistérios!
Estranhamente,
Continuo a ouvir
As lamentações ao longe,
E me dou conta
De que não eram cantos
Para meu funeral adornarem!
Sigo o misterioso e belo
Canto tétrico e me perco
Em meu próprio labirinto
De melancolia e medo,
Mas passo a sentir
Um perfume familiar
Pelo caminho a me orientar!
Meus pés em passos
Passam a lembrar
O caminho que passa
A me parecer familiar!
As lamentações
Cada vez mais altas;
E o perfume
Cada vez mais forte...
Quando percebo,
Detenho-me diante
De uma acróstica porta selada
Com o meu próprio sangue
Por meio dos símbolos
E letras do Alfabeto das Bruxas
Correspondentes
À Magia da Fidelidade
Como em todas as outras portas,
Mas próxima à fechadura dessa,
Com o mesmo sangue,
E com minha caligrafia,
Uma inscrição em latim pode ser lida:
Ignis
Patronus
Veritas
Capítulo VII - A Chave Mestra!
Com o peito em fortes
E ressonantes badaladas,
Lembro-me do que encerrei
No misterioso aposento
Em um tempo muito distante,
E de forma descontrolada e aflita
Busco em meus bolsos a Chave Mestra
Que à antiga Rainha pertencia!
Com as mãos trêmulas
Perco a respiração!
Detém-se o canto
E detém-se o tempo
No eterno instante da chave
A introduzir na fechadura uma reviravolta
Em minha desafortunada vida:
Abre-se o ranger de emoções
Há muito enferrujadas,
Empoeiradas, envelhecidas,
E um hálito de esperança
Exala o quarto imerso em trevas!
Volta o pêndulo a se mover
Com seu forte badalar em meu peito,
E em um átimo invado o aposento
Desesperado em busca de vida,
Mas já não se ouve o canto,
Em um aterrador silêncio!
No fundo do aposento,
Uma quase extinta vela
Fracamente ilumina
O solo fértil do meu paço.
Com as rótulas a desabar
Ruidosamente sobre o chão,
Inclino-me sobre a planta seca
Da murcha flor Amarílis!
Pobre habitante
Do quarto escuro e esquecido,
Tão perdida em meio
Ao labirinto de salas
– nem mesmo eu lembrava
de sua existência e localização,
e para a antiga Rainha
passou despercebida!
Foi tarde demais:
O ranger da esperança
Abafou seu último suspiro!
Capítulo VIII - A Dama de Ouros.
Com o coração em degelo
Pelo fogo-fátuo da falsa esperança,
Rios correm e se juntam
Ao mar de agonia,
Inundando minha alma
E transbordando por suas janelas
Em cataratas a banharem o rosto
E a se precipitarem qual invernal
E lúgubre chuva salobra a regar
A planta postumamente
Em seu majestoso túmulo!
Instantes intermináveis
Em prantos ressoam
Solitários pelas paredes;
E quando finalmente consigo conter o sal,
Noto com surpresa e felicidade suprema
Que volta a florescer a Amarílis;
E me recordo que faz parte de sua natureza
Manter a vida em morte aparente
Nos tempos difíceis para depois
Ressuscitar e florescer no tempo certo
– arcanos da poderosa Magia das Estações!
Então percebo que a flama
– fraca, mas persistente –
Era um sinal de que havia ainda
Amor e vida em seu interior,
Crescendo no ventre da terra;
Um amor tão grande e forte
Que iluminava debilmente o recinto
E sobreviveu ao tempo,
À clausura e desamor,
Ao ostracismo e esquecimento!
Minhas lágrimas romperam o selo,
E agora um antigo amor
Passou a florescer em meu paço,
Um amor que nunca havia morrido – eterno?
Rompido o encantamento,
Agora a vejo transfigurada em ninfa,
Como nos idos de minha cândida alvorada,
Com todo o seu esplendor!
Sempre mantive fechada essa porta,
Trancada pela chave da fidelidade,
Que nem sempre é a mesma chave
Que abre as portas da felicidade,
Mas assim que rompi o selo,
Libertei-me e fiquei livre para amar:
A débil chama em archote se converteu
E com ele iluminei até a sala mais isolada
E oculta do meu Ser – finalmente retomei
o controle do meu preclaro paço!
Assim foi o fim do rigoroso Inverno
E o início da perfumada Primavera
– em todo o extenso Reino encantado
com a fugacidade de um idílico momento,
deu-se a celebração da equinocial festividade!
Agora pergunto se mesmo
De maneira doce e ingênua,
Podemos nos atrever a dizer:
“E viveram felizes para sempre!”;
Nunca em um Conto para adultos!
FIM
Epílogo - A Coroação da Carta!
O coração é um labirinto de mistérios!
É um complexo de salas, passagens
E acessos que levam a lugares insólitos
E dimensões desconhecidas!
Se os olhos são as janelas da alma,
No coração está o seu portal de acesso,
O espelho mágico interdimensional
Que nos leva a planos elevados de consciência!
É um grande paço construído
Em variados planos e camadas
Onde se pode guardar alguém
Em uma de suas muitas salas
E em sua alcova amar a outrem!
Ela esteve longe da mente,
Longe do corpo e da alma,
Mas bem escondida
E abrigada no coração,
“Trancada a sete chaves”!
Ao trono que sempre lhe foi de direito a levei,
E passará a reinar sobre toda minha vida
– a antiga Rainha de Copas não passava
de usurpadora ardilosa nesse jogo de cartas
com tema surreal de Conto de Fadas
onde agora finalmente dou as cartas!
Em cerimônia solene de coroação com flores
– símbolo singelo das virtudes da alma –
Dou à nova Rainha, a Dama de Ouros,
O tesouro mais valioso do meu egrégio paço:
A CHAVE MESTRA!
Julia Lopez
05/03/2013
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