Dias [Per]Feitos (Romance Fragmentado: Parte 3 - Capítulo 14)

Capítulo XIV

Um final de semana incomum se apresentou diante daquelas personagens transformadas pelos catastróficos acontecimentos. Andréia voltara oprimida pelo sentimento de piedade em relação a seu amado, ao mesmo tempo revigorada pela chama de seu amor que não mais competia com a magnífica rival. Contou aos familiares o drama, causando comoção, sendo que utilizou uma forma mais didática para tratar do assunto com Lúcia, desconhecia que sua irmã já amadurecera mais do que poderia supor. Lúcia não deixou de comentar com Roberta, o assunto repercutiu, muitos nem acreditaram em algo tão fantástico, inclusive os familiares dos funcionários educacionais que presenciaram o espetáculo em posição de júri. Alguns chegaram a relatar que a diretora ficou abalada, um transtorno traumático, talvez por sentir-se culpada, seu excesso de moralismo havia alimentado a melindrosa situação, desencadeando a fatídica reunião. Sabia que cedo ou tarde aqueles destinos se cruzariam, mas no seu âmago, era oprimida por ter contribuído em adiantar a resolução daquela tragédia. Na escola a rotina imperou, mesmo entre olhares desconfiados pela ausência dos envolvidos na trama, só Lúcia permanecera na instituição educacional, Ruan decidira estudar em outro ambiente, Andréia seguiu a escolha do amado, seus familiares estavam conformados com o romance da filha e admiravam a forma caridosa em tratar do caso. Não se pode dizer que seja caridade o ato de auxiliar por amor, tendo em vista o desejo de retribuição embutido, embora muitos caridosos sintam o mesmo, nem que seja por uma compensação post mortem.

Cléber tornara-se um pai exemplar, tratou da pequena Júlia com um amor sem igual, reconhecera o valor da esposa, tendo a pequena como prova do amor que vivera, o fruto de um momento memorável, deveria respeitar a ausência da mulher com terna homenagem a filha. O coração era dilacerado pela saudade, mas cada gesto novo de sua filha era uma forma de recordar da mãe, uma felicidade sincera surgia em seu peito, logo abria um sorriso para receber aquele olhar meigo de criança. No outro extremo, Jair, isolado do mundo além das paredes de seu lar, mantivera-se por dias, enclausurado. Até que numa manhã ensolarada de terça-feira, saiu de seu recinto. Sem dizer uma palavra a esposa, que surpresa por seu gesto, após dias sem alimentar-se, nem ter dado alguma satisfação às ligações vindas de seu serviço, que eram de cobrança e ao mesmo tempo preocupação, nunca o competente e responsável empregado havia feito algo assim. Seria uma nova forma de revolução trabalhista? Agora seriam os mais recatados e cumpridores dos deveres, que haveriam de fazer greves e incitar os outros a protestarem? Luciana foi até o emprego do marido, de forma velada, contou da maneira mais amena a situação, o patrão entendeu a gravidade e disse que aguardaria a “poeira assentar-se”. Mas a pedido da dedicada esposa, ligava para a casa de Jair para dar ar de importância a sua ausência e tentar estimular seu retorno às atividades. Mas justo naquela terça, Jair saiu emudecido, passou por entre carros que circulavam na via expressa, desrespeitando o tráfego, quase causando uma colisão, atravessou a calçada, dirigiu-se a um prédio que havia sido tombado pelo patrimônio histórico, mas que a prefeitura desejava colocar à baixo para novos projetos arquitetônicos que renderiam investimentos superfaturados. Chegando no último andar, sem cruzar com uma pessoa sequer, pois de forma geral, os cidadãos desdenhavam aquele espaço-monumento, somente alguns historiadores e restauradores estavam inflamados em preservar. Apenas, um breve olhar para as nuvens, que estavam dispersas, dois passos apenas foram necessários, para lançar-se prédio abaixo, talvez alguém tenha se assustado em uma janela do prédio vizinho, ao ver um corpo despencar. Mas parece que naquele dia as atenções não estavam voltadas para aquele local, como era costumeiro, as pessoas ignoravam a história, sem que a história ignorasse a cada uma delas.

Mas logo os transeuntes voltaram seus olhares curiosos, ao ouvir o estrondo do corpo ao bater no asfalto, uma mulher relatou a um repórter que viera cobrir o fato que arrepiou com o barulho de ossos partindo, a notícia se espalhou, o drama tornara-se ainda mais lamentável. Um velório rápido foi promovido, pelo menos o mais breve possível, pois perícia, rabecão, toda a burocracia, além do inquérito policial que foi aberto, mas tudo acabava esclarecido quando vinha à tona o possível motivo do suicídio. O enterro foi simples, a presença de poucas pessoas, caixão fechado devido ao traumatismo facial, o choro de Ruan era verdadeiro, nas lágrimas ele perdoou o pai, e no abraço apertado que deu à mãe, deram por encerrado as contendas familiares. Luciana mantinha sua forma amável de tratar o filho, a família do marido compreendia a situação, acolheram com benevolência a viúva, não deixando de ampará-la um minuto sequer. Ruan e Andréia começaram a vivenciar um romance, tiveram sua primeira noite de amor, ocorreu em uma madrugada de ano novo, parecia a consolidação de uma nova etapa, os fogos estourando faziam a jovem recordar de cenas parecidas que assistiu em romances cinematográficos. Foi a sua primeira relação sexual, havia se guardado para Ruan, o rapaz, já experiente, conduziu da melhor forma possível, fazendo com que fosse o menos desconfortável possível, aquela primeira sensação penetrante que provocava na sua mais nova paixão. Dizem que a inexperiência mútua é bela, mas muitas vezes não é prática, o fato de um dos dois amantes ser iniciado, facilita muitas vezes um ato mais prazeroso, por misturar perícia e imperícia, uma novidade mútua que instiga o desejo.

Ruan sofria ao recordar da mãe, o coração estava dilacerado, dizem que o tempo é curandeiro eficaz, mas muitas vezes, além de fazer esquecer, fabrica memórias que podem perpetuar-se no interior de uma pessoa. A harmonia reinava em sua casa, sua mãe estava feliz com o carinho do filho, a vida seguia sua trajetória, logo se tornou previsível que a relação de Ruan e Andréia seria duradoura, não foi surpresa para os familiares, quando anos depois o rapaz atendia o desejo da namorada, apesar da postura crítica em relação ao casamento, acabou aderindo, passando pela fase do noivado, culminando no ritual de igreja e todos os paramentos que a cerimônia exige, com lua-de-mel festejada em um local paradisíaco que custou as economias que ambos juntaram por algum tempo, apesar de possuírem um valor que permitia explorar terras estrangeiras, decidiram prestigiar o território nacional, desejando apenas um cenário bem reservado. Poucos anos após, estavam sendo brindados com o primeiro filho, ou melhor, filha, que foi batizada com o nome de Karina, uma homenagem que imaginaram ser justa. Casados, resolveram residir próximo aos familiares de Ruan, devido a preocupação com Luciana, que estava só, com idade que necessitava atenção, além de proporcionarem grande alegria com a presença da pequena Karina, que enchia de vida a casa da avó.

Lúcia, com o tempo, distanciou-se de Roberta, a relação desgastou-se, acabou depois se envolvendo com garotos. Concluiu que sua natureza era bissexual, mas mantinha relacionamentos com rapazes, mantendo amantes femininas, como se tivesse um desejo dual, uma androginia que não podia ser contida. Cléber e Ruan desenvolveram amizade, se visitavam, compartilhavam o prazer de ter a companhia de Júlia. Quem convivia com tais personalidades jamais imaginaria tais acontecimentos, como tantas outras pessoas que passam por nossas vidas ao longo de uma existência, suas vivências são restritas a nossa percepção, como as nossas também são veladas frente a percepção alheia, que felizardos somos por isso. Nós mesmos desejamos não recordar de certas vivências, a necessidade de esquecimento, conforme Nietzsche expôs com maestria, sem contar as lembradas de forma aparentemente não notada, relegadas ao chamado inconsciente, somos construídos a partir de mistérios infindáveis.

Longe dessa gama de personagens, em uma cidade longínqua interiorana, uma bela mulher de ar misterioso viera habitar uma residência simples na periferia, sua competência fez com que logo assumisse o cargo de professora da única escola da localidade. A escola, em condições precárias, necessitava de mão-de-obra especializada, estava abandonada pelo poder público, além disso, a diretora se compadeceu com a situação da forasteira, que estava grávida, dama de porte elegante e discretas palavras. Mas dando aula a língua se destravava, expunha os temas com extrema desenvoltura, além de ter aceitado o baixo salário sem reclamações, apesar do costume em ter quantias mais volumosas. Sua nova condição de vida exigia também menos despesas, comunidade agrícola, de hábitos simples, compartilhavam do cultivo alimentício. A professora vivera feliz, teve o bebê com ajuda de uma parteira da cidade, o nascimento foi em sua própria casa, parto natural e saudável. Ao se deparar com o olhar daquela bela criança, não hesitou, as palavras saíram de sua boca com autoridade:

- Se chamará Ruan Artur!

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