Dias [Per]Feitos (Romance Fragmentado: Parte 3 - Capítulo 13)
Capítulo XIII
No auditório, após Jair se recompor, bradou contra o filho, ofendendo o jovem de forma assustadora, fazendo com que Karina viesse em defesa de seu amante. Ruan disse amá-la, que teriam aquele filho a qualquer custo, quando recebeu uma bofetada de seu pai que o fez cair, causando assombro nos presentes. Todos se voltaram para repreender Jair, além de desejarem retirá-lo do local, o homem furioso disse a frase mais monstruosa que poderia ser evocada naquele momento, talvez em qualquer outro momento:
- Karina é sua mãe Ruan!!! Sua mãe!!!
Um vazio invadiu o recinto de forma sisuda, emudecendo todos, Cléber sentiu-se atordoado, como se tivesse recebido uma pancada na têmpora direita. O olhar de Ruan era um terror que refletido causava pânico a quem se atrevesse fitá-lo. Karina desesperada clamava explicações, suas palavras saíam misturadas:
- Como?!?! O que estás a dizer maldito?? Que infâmia profere!!
Saindo em desespero, esbofeteando o rosto de Jair, caindo ajoelhada em prantos. Luciana de forma grave pediu explicações urgentes ao marido. A porta foi trancada pelo porteiro, que ficou do lado de fora esperando instruções, sendo recomendado que qualquer excesso deveria fazer com que invadisse o recinto e se engalfinha-se com quem perdesse o controle das faculdades. Jair tomou fôlego de forma profunda e começou seu relato. Disse que namorou Karina, apaixonando-se perdidamente, tomando conhecimento de sua traição com um de seus amigos. Após a notícia da gravidez, quis castigar a infiel, sabendo que a mesma não mais constituiria matrimônio com ele. Conhecera Luciana na maternidade, a infeliz criatura havia perdido o bebê devido a complicações no parto, subornou uma enfermeira que trabalhava naquela ocasião. Com o salário baixo e as horas excessivas de trabalho que um profissional de enfermagem é submetido, fica fácil corromper a moral desgastada pela labuta cotidiana. Nesse instante Luciana desabou chorando em cima de uma bancada que ficava na lateral do auditório, um choro ressentido de quem ao mesmo tempo sentia alívio por finalmente expor seu fardo, misturado a vergonha diante da platéia que contemplava seu ato imoral, além do martírio em reviver um drama há tanto tempo velado. Jair prosseguiu, expondo que Karina sofrera problemas pós-parto, o que favoreceria o convencimento acerca de complicações com seu bebê. No mais, fizeram as trocas dos recém-nascidos, conseguiram laudos falsificados atestando a possível causa de uma tragédia precoce. Apesar de ninguém se pronunciar naquele momento, as expressões demonstraram um horror invadindo cada um dos presentes. Cléber avançou sobre Jair e desferiu socos que fizeram abrir os supercílios do pai de Ruan, além de quebrar-lhe a pirâmide nasal, causando grande sangria. Nesse instante o sinal foi dado, o porteiro adentrou o recinto, voando sobre Cléber, contendo o excesso de fúria do enlouquecido ex-marido.
Karina chamava Jair de monstro, cuspia-lhe a face ensanguentada, relembrou seu único e verdadeiro amor, que falecera antes de conhecer Cléber, seu nome era Artur, apaixonaram-se sem premeditação, foi algo repentino e sincero, alguns chamariam de amor à primeira vista. Já desejava romper com Jair, sem coragem de magoar este que demonstrava tamanho afeto, acabou tendo um romance clandestino, até surgir a gravidez, não pudera esconder, resolveu expor sua traição, por mais doloroso que fosse. Não desejava renegar seu filho, fruto do verdadeiro amor, Artur acompanhou o processo, inclusive esteve na maternidade, apesar das recomendações sobre afastar-se para evitar possíveis dramas. Jair foi impelido pelo ódio de vingança, mesmo sabendo do papel respeitoso de Artur em ausentar-se inclusive no momento derradeiro de nascimento do próprio filho, em respeito aos sentimentos da mulher que amava. Cléber acalmara, contemplava a cena, sentindo o corpo dolorido pela forma como foi contido, Andréia observava as expressões de Ruan, tentava absorver a dor do jovem, querendo aliviar tamanho sofrimento que provavelmente o dilacerava por dentro. O público institucional ficou calado, apenas contemplando de forma emudecida, sem expressividade que pudesse expor naquela ocasião tão íntima a que foram expostos. Ruan levantou-se, olhou para Jair e disse:
- Nunca foi e nunca será meu pai!
Andréia tentou abraçar o rapaz, que se desvencilhou do gesto de afeto, indo em direção à Luciana, parando diante da desconsolada mulher, olhando em seus olhos e dizendo:
- Talvez um dia sejamos amigos!
Karina já sentia transbordar dos olhos grossas lágrimas, mas com sua resistência além do sentido humano, que a fizera superar até aquele momento as diversas intempéries vividas, ergueu-se com dignidade, dirigiu-se até Luciana e disse da forma mais afetuosa possível:
- Seu pecado foi não desejares deixar de ser mãe, sua dor de perda a impeliu em cometer tal crime, usurpando a maternidade alheia em nome da falta da sua. Te perdôo, agiu por amor, também pelo desespero de um sofrimento que apenas as mães conhecem, a perda incurável de um filho. Deste todo amor e carinho a Ruan, tenho certeza que da forma mais sincera, sou grata por isso.
Naquele momento a comoção foi generalizada, o próprio Jair sentiu as lágrimas misturarem-se com o sangue, engolindo aquela amargura mesclada. Karina foi até as testemunhas institucionais, agradeceu o convívio até aquele momento, pedindo desculpas por qualquer ato que tenha de alguma forma maculado a imagem daquela escola que tanto estimava. Antes de obter alguma resposta, deu às costas e se dirigiu até o porteiro, dizendo-lhe que sempre estimara sua conduta e que tivesse a mesma força de viver em que pusera ao empenhar-se em momentos de solicitude. Também saiu antes de alguma resposta do homem de envergadura hercúlea, já entregue à emoção que o momento causava, mesmo tentando disfarçá-la por orgulho machista. Karina caminhou de forma leve até Cléber, amparou seu rosto e lhe disse:
- Passamos momentos difíceis juntos, agora terá sob sua responsabilidade a pequena Júlia, seja o pai que não conseguiu ser como marido.
Cléber se exaltou dizendo que deveriam cuidar da filha juntos, o futuro estava aberto a novas possibilidades, mas sua ex-esposa apenas o calou com o gesto de dois dedos sobre seus lábios. Indo agora em direção a Jair, parando diante do homem caído ao chão, deixando as palavras saírem de seu coração:
- Causaste-me uma dor infindável, não apenas pela primeira angústia de perder um filho, mas por me induzir inconscientemente ao incesto. Nunca pude ter meu pequeno nos braços, agora o tenho como amante, sendo comprometida por circunstâncias inexplicáveis. Tanta estima depositei em ti, mesmo quando me abandonaste no hospital, imaginei sua dor, fui amparada por Artur, sem condições de mesmo conseguir suprir minhas despesas. A duras penas sobrevivi, me restituir das agruras financeiras não foi nada, perto de suportar a dor de um filho morto. O vazio tomou meu ser, jamais sendo preenchido, como se uma gestação de dor tivesse invadido meu ventre, onde a duração é de uma vida, sem possibilidade de nascimento para libertar-se do flagelo.
Karina correu a mão pela face de Jair, com um lenço que retirou de sua bolsa, limpou com delicadeza o sangue do nariz, sem muito êxito, pois secara devido ao processo de coagulação, embora as lágrimas constantes fizessem umedecer novamente. Tocou o corte no supercílio, havia sido atingindo em pontos dignos de um round de boxe, sentiu a ferida com a ponta dos dedos, e continuo:
- Me senti amada novamente, um amor sincero invadiu-me a alma por uma segunda vez, agora sei ser de filho e mãe, o vazio da ausência foi preenchido por um novo vazio de presença. Pois o fato de ter um filho resgatado agora, faz abrir um abismo dentro de mim, pois fui além de tudo que a sociedade repudia, não podendo mais apagar os atos cometidos. Eu te perdôo, porque a tarefa mais difícil será obter o perdão de si mesmo.
Jair chorava soluçando, o rosto caído sobre a face que amparava o peso do desespero, não conseguindo contemplar a realidade que o circundava. Karina ergueu-se mais uma vez, indo em direção a Ruan, parando diante do rapaz, deixando fluir o que lhe restava de força:
- Meu filho, querido! Saiba que te amo! – Os dois se abraçaram por um longo momento.
- Também te amo, Karina! Quero dizer, mm..mãã...mãe!!
- A sua missão será difícil meu filho, mas sua força é grande para suportar e seguir em frente. Não devemos nos afundar em culpa, somos resguardados pela inocência do ato cometido, ainda assim, lhe peço perdão e que possa desfrutar deste mesmo perdão em relação a si e a todos aqui envolvidos. Não nos cabe a condenação alheia, meu amado.
Nesse instante pegou a mão de Andréia que se encontrava próxima, colocou sobre a de seu filho e continuou:
- Sempre estará comigo e eu contigo. Mas o ato cometido exige uma reação, ficando aqui serei condenada pela opinião pública, levando-o comigo terei a lembrança presente do vivenciado com os olhares que nos afligirão um ao outro, por serem olhares dos que se provaram enquanto amantes. Minha condenação é o exílio.
- Não me deixe mãe, não suportarei sua falta! – Desesperadamente Ruan apelou, mas Karina estava decidida.
- Não torne um sofrimento maior do que ele é, Andréia será sua querida amada, o afeto de vocês será importante junto com o tempo, para cicatrizar dolorosas feridas. Não posso cometer outro crime e abortar esta vida já evoluída em meu ventre, por mais que digam ser fruto de uma degeneração, pra mim é a prova da inocência mais sublime, é meu desejo ter este filho.
Karina de forma furtiva, dirigiu-se à porta, dizendo precisar de um pouco de ar, o porteiro a acompanhou. Comentou que preocupava-se com os envolvidos juntos naquela sala, que percebera um olhar malicioso de Cléber, que deveria assegurar que não ocorresse outro confronto. O ingênuo guardião da portaria, acreditando um gesto mais intemperado do ex-marido, adentrou o auditório, também pela professora ter solicitado um calmante que disse ter guardado na bolsa, o que o preocupou pelo estado da gestante. Karina já verificara a chave na fechadura, em gesto rápido trancou todos, saindo em disparada com o dinheiro que guardara nos bolsos, entrou em um táxi, pois havia um ponto próximo do local onde se encontraram. As pessoas se desesperavam tentando abrir a porta, que era espessa, nem mesmo a brutalidade do porteiro pudera abri-la. A professora já afastada do local, comunicou a funcionários da escola que pessoas encontravam-se presas no anexo à instituição, dando instruções de onde deixara as chaves. As portas foram abertas, assim como as novas possibilidades que surgiam diante daquelas personagens. Os funcionários prestimosos que abriram as portas tentaram obter alguma explicação sobre o que haveria ocorrido naquela ocasião, mas foram recebidos por um silêncio fúnebre.