Dias [Per]Feitos (Romance Fragmentado: Parte 3 - Capítulo 12)
Capítulo XII
Chegado o dia anterior a uma madrugada de mal dormidos, o cenário fora minuciosamente ornamentado, a diretora fez questão de pedir a funcionários da escola que preparassem o local antes do horário previsto, apenas sendo explicado que seria ali realizada uma reunião importante. Além da diretora, dois outros coordenadores foram solicitados para fazerem parte da mesa julgadora, já cientes dos últimos acontecimentos. Karina chegou primeiro, os olhares institucionais pesaram sobre ela, Cléber a acompanhava e sentou-se em um banco afastado, a seriedade tomou conta do semblante de seu ex-marido. Em seguida chegou a mãe de Ruan, acompanhada do filho e de Andréia, os três sentaram-se próximos, o rapaz fez questão de cumprimentar Karina, com um aperto de mão cordial, causando certo burburinho entre os presentes. Um Sherlock Holmes teria reparado a puxada de mão da mãe tentando impedir o filho, o olhar odioso de Andréia, os olhares questionadores dos que compunham o grupo institucional, além da fúria que resvalava dos olhos de Cléber. Luciana, a mãe de Ruan, dissera que Jair havia se atrasado por causa do emprego, que poderiam iniciar sem ele. A exposição primeira foi feita pela diretora, que alegou tal ato ser uma afronta aos princípios morais da escola, que tinha orgulho de seus valores tradicionais. Dizendo que a professora havia sido demitida, conforme solicitação dos pais do aluno, também o incidente teria sido abafado por divulgarem informações sobre tudo não passar de um trote formulado pela mente de algum aluno sem consciência. Após resolverem as questões institucionais, Ruan pediu a palavra, expondo todo seu sentimento, quase sendo contido por sua mãe, mas sendo amparado por Karina, que também assumiu o relacionamento, o que causou repúdio aos outros presentes. Luciana alegou ser um ato de pedofilia, ameaçou acionar o poder judiciário, as vozes se alteraram, pareciam todos estarem contra o casal. De repente, uma frase de Karina fez um silêncio doloroso invadir o recinto, duas palavras causaram um impacto sem igual, pareciam sair em câmera lenta dos lábios da professora:
- Estou grávida!
O olhar surpreso de Ruan diante da revelação demonstrava uma alegria incontrolável, não se contendo, indo até sua amada e beijando-a nos lábios, fazendo com que a própria diretora pedisse ao jovem para conter-se. Luciana chorava, dizendo ser um desgosto, Andréia estava petrificada, sua rival conseguira um trunfo sem igual. Cléber quis surrar o rapaz, mas o porteiro que foi chamado para servir de segurança, deteve o ex-marido com força e audácia de um leão-de-chácara. Poderiam fazer o teste de DNA, mas Karina sabia que o filho era do seu Ruan, estava com três meses de gravidez, por sua experiência, acabara pressentindo que poderia ter ocorrido. Não perdeu tempo em providenciar exames, não satisfeita com resultados farmacêuticos, foi em clínica especializada, apresentando o laudo aos que estavam naquela audiência. Não fazia amor com ninguém que não fosse Ruan. Cléber já se conformara, fazia tempo que não desfrutava do sexo da esposa, excluído de vez com a separação, pensou na filha Júlia que haviam deixado sob a tutela da amiga de Karina. Por mais que o ex-marido ainda tivesse o trunfo da guarda de sua pequena, agora contava com um rebento rival, por mais que a ex-esposa, que pra ele nunca seria “ex”, tivesse afeto à menina, carregava no ventre um consolo. Jair surge repentinamente, pedindo desculpas pelo atraso. Karina reconheceu a voz, olhou espantada para o pai de Ruan, dizendo de forma ríspida:
- O que faz aqui, Jair?
- Karina?!?! Como se atreve? – respondeu Jair com uma interrogação ainda mais peremptória.
Todos da sala se entreolharam com ar de espanto, principalmente Luciana, sua fronte revelava a expressão de um significativo ponto de interrogação. Karina antecipou dizendo que tiveram um relacionamento no passado, fazendo Jair furioso acrescer que foi muito mais do que isso. Foi quando Ruan interrompeu, comentando aquilo ser um absurdo, sua amante de agora, outrora de seu pai. Jair ficou trêmulo, recordara-se do motivo da reunião, sabia agora que Karina era a peça que faltava no seu quebra-cabeças. Aos berros, disse que o filho não poderia ser amante daquela sórdida mulher, a discussão estava encerrada, deveriam ir embora e que nunca mais a tal professora cruzasse o caminho deles. Mas Luciana trouxe à tona o agravante de gravidez, fazendo seu esposo cair ao chão, como acometido por um mal súbito, chegando a bater com um dos braços de forma violenta em uma cadeira quebrada que estava próxima ao local que caíra. Foi erguido, sua mão sangrava por um corte feito pelo pedaço de madeira partido que pendia do móvel deteriorado, os coordenadores junto com o porteiro, arrumaram alguma gaze num kit de primeiros socorros que se encontrava num armário daquele auditório. Ruan não mais resistindo, disse que se retiraria dali com Karina, pois o desenrolar daquele drama tornara-se patético.
Lúcia havia feito outra visita a Roberta, sabia que estariam sozinhas, aproveitaram para mais um ato de amor sexual, sem pensarem em cuidados que amantes amadurecidos nunca deixariam de se resguardarem. Euclides, pai de Roberta, chegara de mais uma empreitada no hospital, transtornado com o estado enfermo da esposa, embora mais conformado, o fardo que a doença causa quando se prolonga, fazendo com que a dor se torne cotidiana, o que causa certa indiferença diante do sofrimento. Havia deixado o filho na casa de amigos, os dias penosos amarguravam sua família, era bom que o garoto pudesse jogar vídeo-game com amigos, uma distração que ele não tinha, no máximo sua sinuca nos finais de semana. Subiu até o quarto de Roberta, como de costume fazia, geralmente para beijar a testa da pequena enquanto dormia, uma forma de velar o sono inocente. A porta estava entreaberta, foi quando ouviu sons atípicos, o que fez espiar pelo vão, a cena era escandalizadora, sua pequena Roberta estava fazendo sexo, e não foi difícil reparar que existia experiência na prática, além disso, era com outra menina, Lúcia. Por um instante não soube como proceder, deveria esbravejar, fingir que nada havia acontecido, inventar uma chegada repentina, deteve-se por mais um instante e saiu. Desceu as escadas na ponta dos pés, foi até o cômodo que fizera de escritório, se fechou dentro da sala. Contemplou os livros na estante, pensou no drama da filha frente à doença da mãe, que seria estupidez gritar com a menina, sempre procurou ter sensatez. Os pudores educacionais não permitiram tratarem do tema “sexo” precocemente, a contemporaneidade fazia eclodir nos lares diversas formas de informação, os jovens acabavam descobrindo por si, muitas vezes assumindo riscos de forma inconsequente. A filha fazia sexo, era fato, além disso, mantinha uma relação homossexual, talvez em outro momento isso fosse um absurdo, agora ele perderia em breve a esposa, só restando os filhos, porque condenar a opção sexual da menina, poderia mudar posteriormente, mesmo se não fizesse, deveria aceitar as escolhas alheias.
Folheou um livro de Freud, pensava sobre teorias psicanalíticas a respeito da conduta libidinosa humana, ficou parado, petrificado diante do espetáculo de contemplar o sexo de sua filha, como os filhos muitas vezes fazem ao flagrarem os pais. O que mais o assustou foi ter sentido um arrepio, involuntariamente sentiu seu membro enrijecer-se, a culpa tomou sua consciência, excitara-se com a própria filha, que pérfido tarado seria. Sua mente acostumada à pornografia que lhe serviu de educação sexual, reprimia a fantasia do sexo entre duas mulheres, tivera o desejo guardado por muito tempo, nunca pudera expor à esposa, a vergonha o impedia de compartilhar tais taras. Sentira reflorescer a vontade por um ato imprevisível, a filha realizando seu secreto voyeurismo. Sentiu repugnância por si, recordara-se da reportagem que assistiu, o Humberto pedófilo, seu ato ainda mais sórdido por estar envolto em incesto, ao mesmo tempo tentava justificar sua inocência pelo involuntarismo, não mais sentindo nem um resquício de desejo por aquele espetáculo. Fingiu inclusive estar adormecido no sofá, quando ouviu a filha descer as escadas, além de abrir de forma silenciosa a porta do escritório e espiar o pai, talvez para certificar-se de que não teria sido flagrada. Depois, quando as meninas lanchavam, levantou-se procurando demonstrar o ar mais indiferente possível. Sentou-se na cadeira de cabeceira, ocupando o lugar de chefe de família, como manda a etiqueta, prestando atenção nos olhares que as garotas trocavam, agora percebendo a malícia onde outrora imaginava apenas inocência, pois era seu olhar quem determinava a condição do outro. Foi para seu quarto em seguida, decidido a esquecer aquele episódio no que se refere à culpa, mantendo sigilo sobre o que presenciou, mesmo com uma confissão da filha no futuro. Deixando que a menina desfrutasse dessa felicidade passageira, até o momento que precisaria ser confrontada com a maior perda que até aquele momento havia sofrido.
Cecília e Miguel, com a ausência das filhas, uma tarde à disposição do casal, resolveram assistir um filme, não na conveniência do lar, mas rememorando os tempos mais românticos, foram ao cinema. Um dia de semana, cinema com pouco público, as pessoas na grande maioria detidas nos afazeres cotidianos, não podendo desfrutar do lazer. Cecília que era dona de casa, “do lar” como alguns insistiam em chamar, também vendia seus cosméticos para auxiliar na renda doméstica, fazia seu próprio horário de trabalho. Miguel estava de folga, devido ao acúmulo de horas extras que fizera na montadora, um dia perfeito para um programa de casal que deseja reconciliar o afeto depauperado pelo hábito que embrutece o relacionamento. Entre as opções em cartaz, decidiram pelo gênero nacional, queriam prestigiar o cinema brasileiro, além de se familiarizarem com os personagens. Não faltou a pipoca, havendo certa discordância entre as opções doce e salgada, acabando Miguel servindo-se da adocicada e Cecília da salgada, ele pedindo a cobertura de leite condensado e ela não deixando que faltasse seu parmesão. Puderam escolher um lugar que lhes fosse agradável, acompanhando a pipoca, compraram refrigerantes, assistiriam o filme dramático com atenção, Cecília chegou a derramar algumas lágrimas, também puderam rir em certas cenas cômicas que pareciam dar um toque a mais na trama, desanuviando a tensão do drama. Em seguida, um passeio pelo shopping, vitrines de lojas esmiuçadas por Cecília, um caminhar despretensioso diante daquele cenário propício ao consumismo. Observaram os seguranças retirando um garoto por estar inadequado ao ambiente, parecia um desses guris que encontramos pedindo trocados em sinais de trânsito, sua roupa maltrapilha, os pés descalços, denunciavam sua condição social. O casal, apesar de indignado, fez como a maioria das pessoas de “bem”, não se intrometendo no conflito, apenas afastaram e comentaram sobre o episódio posteriormente. Foi uma tarde especial para os enamorados, nem se deram conta do tempo, entregues aos pequenos prazeres de um dia descompromissado, procuraram esquecer das filhas, era o momento deles, todo o restante viria após aquela ocasião. Um egoísmo duplo sentido entre aqueles que bastam a si, quando se decreta em dado momento que a realidade exterior existe apenas de forma coadjuvante, criando um certo mutualismo entre os envolvidos.