Dias [Per]Feitos (Romance Fragmentado: Parte 2 - Capítulo 9)

Capítulo IX

Lúcia tivera um dia agitado, sua cabeça latejava, provavelmente consequência da tensão causada por imaginar como seria o encontro entre Ruan, Andréia e Harry ou Henry. Naquela manhã procurou estudar normalmente, mesmo acordando com diarréia, estresse que acaba desarranjando as funções orgânicas. Não conseguia concentrar-se nas aulas, explicou estar passando mal, diversas vezes saiu para ir ao banheiro, na maioria era uma desculpa para deixar a mente vagar sem chamadas de atenções dos professores. Em uma das saídas da sala de aula, foi até o banheiro feminino, sabia que a última cabine estava em obras, coberta por uma lona preta, havia uma abertura por baixo da divisória, que interligava com a cabine do lado esquerdo. Lúcia passou deitada por baixo da divisória, sentou-se na privada com os pés para o alto, queria evitar que alguém atentasse para sua presença. Ouviu conversas de meninas sobre namoros, uma outra guria estava se olhando em frente ao espelho, mas a cena que chamou sua atenção viria posteriormente. Uma professora, sabia que era docente por ter cruzado com a mesma na coordenação, não sabendo qual disciplina lecionava, apenas que não compunha o quadro que atendia sua turma. A mulher fez questão de trancar a porta do banheiro, olhou cabine por cabine, a que estava em obras fez questão de vasculhar com maior perícia, só não detectando Lúcia, pelo fato da menina estar muito bem camuflada em meio ao caos de utensílios deixados pelos empregados. A educadora ainda fez questão de inspecionar uma segunda vez, agora de forma mais rápida, parecia nervosa. Abriu em seguida a bolsa, retirou um pequeno frasco, espalhou em cima da bancada da pia algo que a garota não consegui identificar, depois fez um movimento inclinando a cabeça, parecia inalar algo, levantando em seguida com fortes fungadas, parecendo estar resfriada. Após a saída da professora, Lúcia foi até a bancada, notou resquícios de um pó branco na pia, provavelmente o que a mulher teria cheirado, se recordou de relatos sobre uma droga chamada cocaína, nem quis contato maior, temia ficar dependente conforme relatos que ouvira em palestras educacionais. Jogou água na bancada, fazendo limpar qualquer sobra do produto, saiu apressadamente para sua turma, não desejava ter outro embaraço em sua vida, seus pensamentos já tinham destino certo, focados no desenlace da trama que envolvia seu agressor.

Karina estava em sua casa, sua mente divagava, mesmo com tantos afazeres, aulas a serem preparadas, mais atividades para correção, seu marido chegou mais cedo do trabalho, fez insinuação de desejar sexo. A recatada esposa se fez de desentendida, obrigando o esposo, Cleber, a dizer de forma escancarada que precisava suprir suas carências, tendo como resposta uma negativa. Os homens rudes não costumam ser muito condescendentes com rejeições, ainda mais sendo casados, tratam a esposa por objeto de uso exclusivo, à disposição para satisfazer seus caprichos. Alterou a voz, disse que aquilo era um absurdo, que a mulher merecia uma lição. Indo pra cima de Karina, que estava com sua filhinha nos braços, evitando qualquer reação que pudesse machucar a pequena. Uma bofetada daquelas que criam eco acertou em cheio a face daquela mãe, a criança chegou a titubear em seu colo, mas manteve-se firme e sustentou o corpinho da pequenina. O homem saiu de casa irritado, enquanto Karina chorava, tanto pelo seu infeliz casamento, quanto por achar que era merecedora daquele castigo, tendo em vista a traição que ocorria de forma descarada. Naquela mesma ocasião, Cleber, homem acostumado a satisfazer seus apetites, foi a uma casa de prostituição famosa na cidade, um pouco afastada de onde morava, mas fez o trajeto com seu automóvel, sendo recebido num ambiente que lhe era familiar. Não foi a primeira vez que encontrou guarida em tal recinto, era frequentador assíduo, a moral burguesa permite que se tenha certos excessos em local adequado, uma marginalização desejada, algo que fuja à castração imposta pela monogamia vigente, tão aceita na ideologia cristã ocidental e tão cruel de se sustentar diante dos apetites do corpo. Lera em um dos livros que a esposa possuía, uma passagem de um filósofo alemão de nome esquisito, Schopenhauer, onde argumentava sobre a prostituição ser o sustentáculo de uma moral monogâmica. Isso lhe serviu de consolo ao retornar para sua casa numa noite de bordel, naquela ocasião nem se atreveu a tocar na esposa, sentia que poderia ser descoberto ao menor indício de prova que revelasse sua promiscuidade. Tantos homens faziam o mesmo, a traição não deveria ocorrer se fosse contratada, era um serviço que lhe prestavam, aquelas senhoras de rua nem eram consideradas mulheres, tinham um sexo aberto a qualquer negociante que pagasse pelos serviços, estavam alheias a emoções de sentimentalismo barato, a prática tornava o ato sexual mecânico. Cleber se contentava em criar ideias que justificavam seus atos, ainda sentia-se orgulhoso por ser bajulado pelas garotas de programa, embora fosse mal visto, muitas vezes fora grosseiro com as meninas, além de sempre causar conflito no pagamento, solicitando descontos e arrumando justificativas para não cumprir com suas obrigações monetárias.

Um grupo de cinco rapazes aproximou-se de Ruan e Andréia, as risadas maliciosas fizeram os garotos estremecerem, o que parecia ser o líder perguntou o que faziam ali. Andréia disse que nenhum motivo especial, mas estavam cercados, dois deles sacaram armas, o que criou um clima de terror no mesmo instante. O assalto foi anunciado, o carro com vidros fumês não denunciava o que guardava no interior, Ruan direcionou um olhar a sua amiga, começando por tentar se explicar. Foi interrompido por um dos assaltantes, que ordenou que calasse a boca, não aturariam nenhum “filhinho de papai” intrometido. A jovem percebendo o problema, de forma ousada se intrometeu. Dizendo, ao que parecia líder do grupo, que iria explicar-lhes algo desconhecido, fazendo questão de exaltar o rapaz, dizendo que notara sua liderança, contando com sensatez. Um assaltante de boné disse não haver líderes entre eles, mesmo assim, o de barba rala olhou de forma arrogante, demonstrando desejar apreciar a exposição da guria. A garota expôs o ocorrido com sua irmã, o que fizeram para enganar o pedófilo, demonstrando a arma de brinquedo e o punhal de Ruan, indo em direção ao porta-malas. Foi detida pelo assaltante, este mandou que Ruan abrisse devagar o carro, enquanto apontava sua arma para a cabeça da menina. O meliante era realmente esperto, assumiria o controle do tráfico de drogas em data posteriormente próxima na maior favela da cidade, sendo muito respeitado por sua forma em conduzir os negócios marginais. Ao deparar-se com aquele homem aprisionado de forma tão ridícula, o assaltante riu sem pudores, chamando os comparsas para desfrutarem da mesma chacota. Disse que Ruan e Andréia estavam liberados, que agiram de forma prudente ao revelarem a verdade, além de terem sido estúpidos em realizar tal ato naquelas bandas, poderiam ter encontrado um grupo menos condescendente. A garota completou que seria tolice agir de outra forma, era clara a desvantagem deles em relação a grupo, tanto em número quanto em armamentos, além de estarem em terreno desconhecido. O assaltante retirou o dinheiro em excesso da carteira dos garotos, deixando apenas o suficiente para a passagem de ônibus, disse para não se preocuparem, pois agora o estuprador de crianças era problema deles. Os jovens estremeceram diante de tais palavras, foram caminhando sem olhar para trás, logo ao chegarem no ponto, conforme indicação do bandido, o coletivo logo veio, entraram com receio de serem surpreendidos por outros assaltantes, sem contar o desconforto da garota com aquela arma dentro da calcinha. Ao ver a aproximação do grupo, já prevendo algo inusitado, fez a pequena pistola escorregar da cintura para a calcinha, sua calça era larga e não causava impressão de volume, só seria denunciada se fosse revistada, mas teria que correr esse risco. Um dos meliantes ainda disse que era uma “ninfeta daquelas”, mas não se atreveram a tocá-la, estavam mais interessados em rendas do que em satisfações sexuais. O líder parecia antever o problema que causaria uma atitude de estupro a uma jovem tão bem conservada como aquela, a família exigiria providências, a opinião pública se empenharia, seus projetos de assumir o tráfico poderiam estar comprometidos por uma imprudência de se deixar levar “pela cabeça de baixo”.

Lúcia ao ouvir o barulho da porta, correu para encontrar a irmã. Andréia pediu um minuto, ao notar que a mãe estava dormindo no sofá da sala, o pai havia saído, foi até o guarda-roupa do casal e devolveu a arma ao seu local de origem. Lúcia gelou ao presenciar pela primeira vez a presença daquele objeto em seu lar, além do pânico à leve suposição da irmã ter cometido algum ato trágico. Logo foi interada de todo o episódio, ficando a dúvida do que poderia ter acontecido ao asqueroso Henry, ouviram sempre comentários de que bandidos costumam ser cruéis com estupradores e delinquentes do tipo. Fugiu do controle a situação, agora não poderiam se manifestar, corriam o risco de serem incriminados por permissividade, omissão, também agiram de forma criminosa ao coagir o sujeito, sem nem mesmo denunciarem o caso à polícia. Ruan convidou Andréia para visitá-lo, ficaram conversando sobre possíveis desfechos para a aventura que vivenciaram. O rapaz disse que deveriam prestar atenção em noticiários, provavelmente o caso se tornaria público, causando nos jovens e na pequena Lúcia uma busca incessante por informações que pudessem ser um indício do assunto em voga. Karina faltou aula, Ruan ficou preocupado, mas sua amada revelou ao telefone que não era algo grave, apenas sentia-se indisposta, o rapaz notara algo diferenciado em sua voz. Tiveram outro encontro na quitinete, o rapaz expôs todo o caso, Karina ficou assustada, repreendeu o jovem por tamanha imprudência, também revelando seu conflito doméstico. O rapaz ficou irritadíssimo, disse que não admitiria tal coisa, que Karina precisava tomar alguma atitude. Dias tempestuosos estavam por vir, a balzaquiana ganhara forças com seu rejuvenescido amor, procurou um advogado público, disse desejar o divórcio, o marido foi notificado. Aproveitou o dia de trabalho do esposo, retirou o que era conveniente, foi se abrigar temporariamente na casa de uma amiga, levando sua filhinha, além de objetos pessoais, somente o material mais bruto foi deixado, contou com o auxílio de conhecidos no transporte, o próprio Ruan se prontificou a ajudar. O marido transtornado foi até a escola, ameaçou Karina no corredor da instituição, causando um clima desagradável no ambiente de trabalho da esposa. Nem se dera conta que havia também sido notificado pela Delegacia da Mulher, a Lei 11.340, nomeada de Maria da Penha, uma “homenagem” a uma das tantas vítimas de maus tratos masculinos na sociedade regida pelo machismo, assegurava a integridade física de sua esposa. Chegando ao distrito policial, foi recebido por uma delegada que não se mostrou amistosa, dizendo que deveria se afastar da esposa, que fez o relato, mas evitou exame de corpo de delito, alegando preservar sua filha do processo de divórcio. O marido poderia ter sido encarcerado, mas a delegada havia sido acionada pela amiga de Karina, chamada Fátima, também professora, que salientou que o “covarde” deveria apenas levar um susto.

Os trâmites do processo seguiram sem maiores agravantes, Cléber manteve a distância requerida pela delegada, Karina com as economias guardadas, alugou uma quitinete mais aconchegante, se desfez da outra em que se encontrava com Ruan, procurou revelar há poucas pessoas o endereço de sua nova morada. O imóvel possuía uma pequena cozinha, com uma área que servia de varanda, um banheiro também de pequenas proporções, uma sala mais ampla e um quarto de igual medida com divisória que permitia privacidade. O casal passou a desfrutar de uma intimidade maior, Ruan também se afeiçoara à pequena Júlia, a filhinha de Karina, cobria de carinhos a pequenina, o rapaz tinha uma maturidade precoce, daquelas que fazem mesmo pessoas em idade avançada admirar, sabendo que jamais teriam alcançado tal estado de discernimento. Andréia reatou a amizade com Ruan, ouvia seus relatos sobre o romance que vivia, se entristecia por dentro, uma vez dissimulou estar envolvida com alguém, o rapaz nem demonstrou inquietação, ficou até mesmo feliz por saber, seu coração estava mesmo entregue à professora. O mundo dos amantes costuma revelar-se complexo, um labirinto de emoções que dificilmente se cruzam conforme a vontade dos desejantes, é o acaso quem premia nos corredores do ir e vir o coração de cada Teseu perdido. Eros realmente atira suas flechas ao léu, um gozador dos mais terríveis, ainda que se desenredasse desse modelo mitológico grego, cairia na tragicidade romântica, onde o final acabaria sendo perturbador, vitimados pela desilusão de não conseguir dobrar o já concebido como impossível. Mas se existe uma sombra que caminha lado a lado com os amantes, é sem dúvida a última anátema que restara dos malefícios mundanos, que ficou esquecida no fundo da ânfora de Pandora. Os corações apaixonados sempre esperam um ato em favor de sua causa, são os mais metafísicos que existem, também os mais perseverantes, colocam tudo que há a serviço de seu desejo maior, tornam-se cativos de seus próprios sentimentos, almejando uma liberdade impossível. O apaixonado que se liberta, deixa de viver aquele sentimento de entrega que alimenta seus sonhos, cai no solo da realidade, espatifa as vãs expectativas, deteriora o vulgar romantismo, passa a não mais exaltar. Pensando nas palavras que havia lido, na terceira estrofe da “Lira do Amor Romântico”, do poeta Carlos Drummond de Andrade, Andréia não deixava de mentalizar aquele axioma memorizado:

“Todo amor vive de engano.”