Dias [Per]Feitos (Romance Fragmentado: Parte 2 - Capítulo 7)
Capítulo VII
Ruan começara com certa insistência em constantemente apresentar-se à Karina, toda ocasião que fosse possível, o rapaz se fazia evidente. Suas colocações em aula aumentavam a cada instante, Karina para evitar o encontro, começou a dispensar as audiências feitas após a aula. Era um jogo de gato e rato, onde comentários sutis eram feitos sem que outras pessoas se dessem conta da gravidade implícita. A escola se tornou cenário de uma relação que usava o ambiente como campo de batalha, as outras personagens eram meras coadjuvantes nessa trama até então insuspeita. Ruan vez ou outra insistia em enviar algum bilhete, tentava várias formas de contato, era tratado com frieza. Para agravar a situação, soubera do matrimônio de Karina, que também era mãe de uma pequenina, as coisas se tornavam a cada instante, mais difíceis. Também chegou em seus ouvidos que o antigo professor de Filosofia estava com câncer, isso o comoveu, fazendo com que agendasse uma visita. Ao chegar na casa do antigo educador, que para Ruan nunca perderia o posto, viu Pedro, seu antigo professor, em estado deplorável, a expressão dura que a doença causa na pessoa, aquele olhar longe que deixa escapar um ar mórbido à espreita. A mão de Pedro pousou sobre a de Ruan, disse para o rapaz nunca perder aquela gana de conhecimento que fazia cada momento valer a pena, Ruan não conteve duas lágrimas que escorreram de forma tímida de seus olhos, uma para cada órbita, o espetáculo dramático estava pronto. Um silêncio tomou conta do ambiente, a esposa de Pedro, Débora, agia com muito carinho, embora em seu semblante também fosse patente os efeitos que a doença causam nos familiares. Quando alguém adoece, a família e pessoas amigas padecem juntas, parece que uma rede de contaminação é formada por um compadecimento alheio.
Andréia resolveu ir à casa de Ruan, contou em detalhes o episódio ocorrido com sua irmã, apresentou a evidência, o número da placa que fora anotado pelo vigia. Os dois estavam unidos em um plano para envolver o agressor. Andréia começou a vasculhar salas de bate-papo, sempre utilizando nick’s que davam entender pouca idade, se deparou com tipos que a fizeram sentir asco, algumas vezes contava com a providencial companhia de Ruan, em outras era uma aventura solitária. Aquele enredo ocupava sua mente, o que era um embuste para não sofrer tanto por causa do amor não correspondido de seu amado. Lúcia ainda estava se recuperando do incidente, na escola seu desempenho caíra devido ao vortex emocional que arrebatava seu coração, além disso, guardava para si aqueles incidentes todos. Vieram em sua memória os detalhes das conversas virtuais, o encontro, como Harry a agredia, com aquele olhar sem piedade, as mãos que tocaram sua pele. Quando tomava banho, esfregava a esponja com força, algumas vezes arranhava a pele, a sensação de sujeira pela recordação daqueles braços peludos que a comprimiam. Aquele cheiro de suor que causava-lhe náuseas, no banheiro após o incidente, constatou que o infeliz havia estragado o zíper de sua calça, quase tocou naquele local considerado intocado. Gostaria de ter menstruado naquele momento, dado uma boa borrifada de sangue naquele canalha, mas estava seca, sem contar a falta de forças por ter lutado tanto tempo com aquele sujeito de ar monstruoso, seu hálito era de latrina. O olhar de Lúcia adquiriu uma malícia de maturidade precoce, a vida havia lhe mostrado que as fantasias estavam longe daquele encanto infantil, era de uma natureza das mais horrendas, beirando os suspenses e de uma tragédia que faz o terror ficcional parecer tolice. A menina acabou sentido trauma pelos bate-papos virtuais, o hábito de ler a fazia afastar-se de tal tecnologia social, também se distraía assistindo filmes, os jogos eletrônicos eram ótimos atrativos.
Karina saindo do colégio, atrelada há diversos afazeres, abriu a bolsa para retirar sua carteira e separar as moedas para a passagem do ônibus. Ouviu uma voz sussurrando que não gritasse, o assalto foi anunciado, dois adolescentes, um estava com arma em punho, pediram a bolsa e os pertences que consideraram de maior valor monetário. O pânico tomou conta de Karina, suas pernas estavam trêmulas, só pensava em sua filhinha, o medo fez com que ficasse paralisada, um dos meliantes ainda comentou que “não era de se jogar fora aquela professora”. Uma voz gritou da esquina, parecia algo do tipo “pega ladrão”, os jovens se assustaram, um atirou na direção de quem gritava. Saíram correndo, os pertences que estavam na bolsa com o solavanco do puxão acabaram caindo pela calçada, Karina caiu no chão, ficou sentada chorando. Ruan quem apavorou os assaltantes, viera socorrer Karina, sempre acompanhava de longe o trajeto que ela fazia ao sair da escola, notou uma movimentação estranha, até que percebeu o que estava ocorrendo, resolveu arriscar. Não se dera conta do risco de sua atitude, fez a professora passar perigo, além do tiro que passou muito próximo dele, o projétil encontrou guarida em um muro de chapisco próximo. Para Ruan, balas perdidas sempre encontravam um bom abrigo, não gostavam de vagar feito órfão, não hesitavam em acertar a fronte de uma criança brincando despreocupada num campinho de terra qualquer, algum transeunte desprevenido ou mesmo um policial experiente poderia se render à revelia, de um tiro disparado. Apesar de todo o estardalhaço, ninguém se manifestara na rua, as pessoas habituadas, acabavam se embrutecendo por conta da violência cotidiana, não existe mais nem o espírito de solidariedade, o que importa é fingirem-se de ausentes, resguardadas do ambiente público selvagem. Dentro de seus lares, que importa os homens serem lobo do homem fora da aparente docilidade doméstica. Karina e Ruan voltaram à escola, o rapaz recolheu os pertences da educadora, entraram pelo pátio, o porteiro estava ausente de suas funções, parecia isolada a instituição educacional, exceto por gritos longes que vinham da outra extremidade do prédio, crianças entretidas em atividades que se desenrolavam ao longo do dia. Muitos pais usavam como desculpa a preocupação em desenvolver o aprendizado dos filhos, deixando-os o dia todo enfurnados na escola, o intuito era que servisse de creche enquanto trabalhavam.
Karina foi ao banheiro lavar as pernas sujas por ter sentado na calçada, observou a marca de um puxão que levara no braço direito, a sensação que imperava era de alívio. Quando saiu do sanitário, foi até a sala onde Ruan estava, entrou olhando nos olhos do rapaz, agradeceu pela coragem. Já desconfiava o motivo dele estar presente naquele momento, completou explicando que precisava ir para casa, havia muito a se fazer ainda. Ruan disse que havia só mais uma coisa, entregou a tampa do pequeno estojo de maquiagem que havia se partido, ao passar o objeto para as mãos da professora, sentiu os dedos se tocarem levemente. Antes que Karina pudesse se dar conta, recebeu um beijo nos lábios, mas a surpresa foi não ter resistido, entregando-se aquele ato impensado, mesmo sob pena de um flagrante que renderia no mínimo uma demissão por justa causa acompanhada de muitos insultos. Foi um ato magnífico de carpe diem. A realidade parou naquele momento, era um beijo daqueles que esperamos com tanta sofreguidão, que quando ocorre parece o mundo todo estar paralisado para contemplar. A educadora recuperou a razão, se desvencilhou do rapaz, mais do seu desejo na verdade, disse que precisava ir. Ruan ainda desconcertado, disse que acompanharia Karina até o ponto, por motivo de segurança. Caminharam em silêncio, o ônibus chegou e a professora com aquele ar imponente entrou no coletivo sem nem olhar para trás. Ao longo do percurso sentiu seu peito apertar, não apenas traiu o marido, mas também seus princípios, em relação ao relacionamento educacional, a gravidade do jovem não ter completado a maioridade. Chegou em sua casa, relatou ao marido o assalto, mas foi recebida com ar de indiferença, apenas um comentário que havia sido bom não ter ocorrido nada de mais grave. Era ela quem estava em pânico, não mais conseguiria fazer o trajeto rotineiro sem aquela sensação de terror, uma fobia pela violência sofrida, sabia por ter passado por outras situações semelhantes. Leva-se um tempo para andar de novo despreocupado com os outros, passa-se a desconfiar de qualquer um, a realidade volta-se com um olhar pesado sobre os corações perturbados.
Andréia aceitou o convite de parentes para uma viagem, foram em um sítio da família, aqueles lugares que nos afastam dos problemas do que pensamos ser uma realidade contemporânea. Parece que somos remetidos a uma calmaria, onde o tempo age de outra forma, nada que deva ser conduzido por longa duração, pois enfastia quem acostumou-se à correria e perturbações urbanas. Lúcia e Andréia aproveitaram o momento, não tocaram no assunto que rendeu uma aventura ainda em execução. Andréia era criticada pelas pessoas da região, por manter toda aquela maquiagem num ambiente tão desprovido de observações estéticas. Visitou um curral, sentiu nojo ao averiguar o processo de ordenhar uma vaca, seu pai provara aquele leite asqueroso, só de lembrar causava-lhe náuseas. Lúcia adorou brincar com os filhotes recém nascidos de uma vistosa cadela que compunha a matilha vira-lata do sítio. No sábado de madrugada ocorria um forró numa agremiação próxima, todos foram, Andréia não suportava aquelas músicas, ficou sentada próxima a um riacho, observando a água que refletia a noite. Parecia um fluxo negro pronto a engolir a realidade, uma espécie de buraco negro, ou algo próximo a isso, não tinha conhecimento astronômico suficiente para tais analogias. Um rapaz das redondezas, Sérgio, aproximou-se, tentou puxar conversa, Andréia disse que não estava disposta à amizades, conversas na beira de um riacho, chamou o rapaz para um local nos fundos da agremiação, lá o beijou sem cerimônia. Queria apenas ficar, nada que precisasse muita prosa, seu desejo era satisfazer sua vontade de beijar, embora quisesse a boca de Ruan, mas essa era a que estava disponível, servia como distração naquele tedioso final de semana. Quando se deram conta, estava na hora de retornar para casa, no trajeto ainda enfrentaram um engarrafamento, o motivo era um desastre, aqueles peculiares causados por imprudência do motorista, provavelmente os passageiros pagaram o alto preço na tentativa de conquistar uns minutos a mais. Engraçado como uma volta ao lar remete a valorização do ambiente familiar, aquela sensação de um alívio que invade o sujeito após determinado tempo longe, de folga da rotina, fazendo compreender os que se emocionam por estarem distantes.
Andréia seguia sua rotina de Sherlock Holmes, um dia de quarta-feira daqueles bem convencionais, que causam fastio, por perceber que estamos no meio da semana, considerada ativa, dois dias passaram, dois ainda por vir. Meio termo que deixaria qualquer Aristóteles irritado. Mas estava diante de uma conversa intrigante, o sujeito parecia muito reservado, recordando do episódio que a irmã passara, provavelmente o agressor estaria receoso, já diz o ditado que “gato escaldado tem medo de água fria”. O sujeito se autodenominava Henry, explicou que era um nick de origem inglesa, significando soberano do lar, mas que seu nome era Henrique, utilizava tal alcunha como estrangeirismo que tinha alguma lembrança de diminutivo do seu verdadeiro nome. Abriram webcam, a jovem, muito perspicaz, retirara a maquiagem, deixara os cabelos soltos de forma a aparentar menos idade, pois relatara ter quatorze anos. Andréia chamou a irmã que se escondera, de modo a não ser vista pelo foco de visão da câmera, a menina ficou trêmula e com expressão de terror ao rever a imagem do seu horrendo agressor. Andréia entendeu que havia conseguido encontrar o que desejava, pediu que a irmã se retirasse, acionou o volume. Ouviu a voz de Henry, deixando tudo registrado, gravou tanto a conversa, através de seu celular, como havia conseguido com Ruan um programa que capturava vídeos da webcam, acabaram no final da conversa marcando um encontro. Andréia dissimulara sua voz, procurando dar um tom mais esganiçado, além de utilizar um vocabulário que julgara mais adequado a uma idade compatível com a de sua irmã. No mesmo instante entrou em contato com Ruan, estava na hora de aplicar a segunda parte do plano que haviam desenvolvido, que era a mais complexa. Acertaram tudo, combinaram que contariam aos pais que fariam trabalho escolar em grupo, inventaram um suposto local de encontro, Lúcia que sabia da trama ficou consternada, temia pela segurança de seus protetores.