Dias [Per]Feitos (Romance Fragmentado: Parte 2 - Capítulo 6)
Capítulo VI
Chegara o dia da festa, Lúcia estava em seu quarto, pensativa acerca das questões recentes que haviam desconcertado sua percepção. Não podia mais brincar de bonecas, via naqueles pequenos brinquedos que simulavam as meninas, algo que escapava sua nova realidade. As bonequinhas, com aquele ar de uma candura fossilizada, secas por dentro, ao contrário dela, bem viva, vermelho-sangue, que logo seria atravessada por um homem de fora pra dentro, depois de dentro pra fora por um filho. Até existia no segundo momento uma semelhança com certas bonecas que expelem bebês-bonecos, os criadores devem ter pensado que não enganariam por muito tempo as meninas que são pequenos projetos de mulheres, mas ainda falta veracidade nessa simulação de parto, não existe a gosma e o sofrimento. A ficção infantil tende a ser recheada de felicidades, o que difere da realidade, que se apresenta de forma dura, corrompendo qualquer estado de graça, deformando com viscosidade. Andréia estava afoita com o evento, arrumara-se com mais rigor que de costume, horas se embelezando para garantir uma estética agradável a seu Ruan. Convencera os pais argumentado ser festa na casa de um amigo de turma, com a presença dos pais do garoto, o que dificultaria excessos, além de não haver bebidas alcoólicas e coisas que pudessem tornar o ambiente impróprio para a filha querida. Foi de carona com Amanda, os pais da amiga fizeram questão de levá-las até o local, talvez para assegurarem-se de tudo que a filha lhes havia relatado. Pois a norma dos pais é confiar sempre desconfiando dos filhos, ainda mais nessa idade de abraçar o mundo custe o que custar. Ruan se vestiu de forma habitual, embaixo do braço ia um exemplar do “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, iria de ônibus, resolveu se entreter no trajeto com uma leitura que fazia gosto em rememorar.
A casa de Elias era de aparência modesta, mas ao entrar assumia ares de requintada moradia, parecia ter sido feita com esse propósito, de apenas causar fascínio a particulares que adentravam a moradia. O quintal era imenso, haviam alugado mesas, cadeiras, tudo estava disposto a comportar o público esperado. A churrasqueira estava acesa, provavelmente algum daqueles experts em assar uma carne já se antecipara, mesmo porque, esse estilo de evento recebe pessoas com ares famintos. Num churrasco o principal é justamente ascender o fogo na hora certa, um pouco antes da chegada de convidados, para recebê-los sem inconvenientes de muita espera, além de uma quantidade farta de carne que começa a pulular quando a chama está no ponto. Os pais de Elias ficaram no pavimento superior, não se intrometiam nos assuntos do filho, confiavam em seu bom senso, até mesmo por exemplos passados que davam um certo currículo de responsabilidade ilibada ao garoto. Os convidados foram chegando, se ajeitando, Andréia e Amanda foram logo percebidas ao entrarem, a primeira por sua chamativa forma de se vestir, a segunda por sua fama que excitava a gurizada. O som que embalava o ambiente era o pagode, diziam que combinava com churrasco, o que Andréia discordava, embora nem se incomodasse, seu objetivo ali estava além de picuinhas musicais. Ruan chegou com cumprimentos tímidos, foi sentar-se na mesa em que estavam as duas amigas, pediu desculpas por não terem ido juntos ao evento, ligara antecipadamente avisando que um contratempo o faria atrasar, pediu que fossem na frente e se veriam no evento. Andréia que ficara tristonha no primeiro momento, logo retomou a alegria ao saber que o rapaz havia conseguido seu telefone com Amanda, além da preocupação em não fazê-la esperar.
Amanda foi para um canto mais isolado do quintal levando um rapazote que era do seu agrado, era o ambiente dos “ficantes”, como diziam, área de penumbra, próximo ao antigo canil, era segura a privacidade dos mais afoitos. Na festa começara a distribuição de bebidas alcoólicas, tudo com bastante sigilo para evitar algo muito chamativo e que despertasse a atenção dos pais de Elias, a cerveja viera escondida em meio aos refrigerantes, estava gelada conforme o gosto da clientela. Afonso, que tinha fama de ser extravagante, conseguiu trazer algumas garrafas de vodka para compor a bebedeira, para disfarçar tal bebida, misturaram-na a sucos, refrigerantes, o que fez a empolgação aumentar no ambiente. Andréia conversava com Ruan sobre “Dom Casmurro”, ambos tinham fascínio pela personagem Capitu, trocaram risos a respeito de divagações sobre a postura de tão fascinante e ficcional mulher. Ruan buscava desanuviar seus pensamentos, mas era só em Karina que pensava, tentando conceber onde estaria sua paixão naquele sábado. Amanda viera chorando por ter sido agredida pelo rapaz que ficara, seu nome era Clóvis, que se achava no direito de tratar a adolescente daquele jeito. Andréia tomou as dores da amiga e foi tirar satisfações, Clóvis não se intimidou, além de acrescer que sempre achara sua postura esquisita, agregou o comentário que pra ele não passava de uma “rockeirinha sapatão”. Nisso, foi dar uma bela bofetada em Andréia, mas sua mão foi detida de forma firme por Ruan, que olhava em seus olhos sem hesitar, emendando um soco que fez o nariz do agressor sangrar, fazendo com que assumisse postura de vitimado. Os três saíram da festa, os outros procuraram abafar a confusão para não alertar os donos da casa. Ruan propôs que fossem de ônibus pra casa, a residência de Amanda era a mais próxima, a garota desceu do coletivo e dispensou acompanhamento até a moradia. Andréia e Ruan seguiram abraçados naquele coletivo, comentavam sobre um ou outro passageiro que chamava a atenção por algum motivo peculiar. Ruan fez questão de levar Andréia até sua casa, a jovem insistiu que ele entrasse, fez as apresentações aos familiares e foram para seu quarto, mantendo a porta aberta, conforme recomendação paterna.
A conversa do casal rendeu, começaram pela literatura, passaram pela música, terminaram nas trivialidades escolares e no incidente daquela tarde, tudo isso sem que Andréia desviasse por um só instante o olhar da direção daqueles olhos brilhantes que faziam os seus reluzir. Só saberiam na segunda-feira letiva que a festa terminara mal, pois a bebedeira fez excessos, alguém por galhofa, abril o canil, a cachorrada saiu correndo pelas mesas, assustando os convidados. Eram cães dóceis, mas quem não correria ao ver dois baitas rottweilers soltos em sua direção, os pais acabaram sendo alarmados e descobriram também as bebidas clandestinas, o que rendeu recriminações a Elias, fazendo com que sua carreira responsável fosse colocada em xeque por um único incidente. Ruan resolveu se despedir, para a tristeza de Andréia, cumprimentou e agradeceu a hospitalidade de seus familiares, indo de ônibus para sua casa, mais uma vez detido em pensamentos que misturavam seu Dom Casmurro com Karina, que poderia passar muito bem por sua Capitu. Lúcia passara o dia assistindo tv com os pais, programas de sábado com conteúdo duvidoso mas que servem de justificativa para unir familiares. Depois resolveu navegar pela internet, começou a procurar temas que Roberta havia exposto, gostaria de saber mais a respeito, além de uma curiosidade maldosa em averiguar se não havia equívoco em nada do que a garota expusera com tanta segurança. Acabou entediada, resolvendo entrar em uma sala de bate-papo, sendo atraída por um interlocutor que cativava cada palavra que digitava. A menina estava empolgada, nunca conversara com alguém daquela forma, expusera num primeiro instante, tanto de si, talvez o mundo virtual tenha esse sigilo que permite uma exposição mais despudorada. As conversas passaram a ser frequentes, começou a ter o hábito de se deter horas em frente ao computador, voltando grande parte do seu dia para aqueles momentos mágicos. Seu nick era Sekhmet, “a leoa que sangra”, pensara, nada mais apropriado, o seu amigo virtual usava o codinome Harry, mas o rapaz lhe explicara não ser por causa da personagem “Harry Poter”, mas se chamava Haroldo, Harold em inglês. Harry era uma espécie de abreviação de Harold, sempre fazia questão de explicar a ela o que dizia, sendo paciente, tendo linguagem objetiva, ao mesmo tempo cobrindo de elogios, o que fazia o ego de Lúcia inflar em cada conversa.
Karina dedicara o final de semana à sua filha, uma espécie de remorso pelos dias de creche, a menininha era muito sorridente, se rendia fácil aos dengos maternos. O marido não era muito afeito às prendas domésticas, deixava a criação da pequena aos cuidados da mãe. Apesar de estar muito feliz por ter gerado uma vida, ainda assim, exercia com rigor seu papel de provedor financeiro, em casa transmitia um ar de indiferença, só se empenhando na resolução de problemas de ordem técnica, como trocar uma lâmpada, consertar um chuveiro ou deixar o carro nos trinques. O sexo entre o casal se tornara uma rotina que tinha obrigação de ocorrer de tempos em tempos, feito dever matrimonial a ser cumprido, custe o que custar. Karina habituara-se a satisfazer apenas os desejos do marido, abria-lhe as pernas e esperava seu membro vir sem cerimônias, não existia nem mesmo beijos durante o ato, ouvia o gemido do esposo, mas se recusava a soltar qualquer som, seu protesto era mudo, em breve ele gozaria, viraria para o lado e dormiria, a sinfonia do ronco se faria presente. Não soube a partir de quando o relacionamento deles esfriara, sabia apenas que no momento não desejava lutar mais, se entregara, enfrentara o mundo, mas acabara refém da coerção privada, sua filha compensava o drama doméstico. Mantinha sua vaidade, mesmo recatada, cuidava do lar com muito zelo, se cobrava muito em relação às tarefas domésticas, além de dedicação sem igual ao magistério, nem o cansaço era-lhe permitido em determinados momentos, mas sua beleza resistia às mazelas do dia-a-dia. Karina também aproveitou seu final de semana para colocar em dia o trabalho acumulado durante a semana, apenas adiantara, como de costume, eram mais tarefas que o seu tempo poderia comportar. Deitada em seu travesseiro, seus pensamentos voavam em meio à escuridão do quarto, fitava o corpo do marido ao seu lado, no âmago um certo asco se formava, mas logo estava entregue a preocupações que considerava mais relevantes.
A segunda-feira chegou com a rapidez que a lida cotidiana exige, o final de semana fora suprimido sem que muitos o percebesse, fazia parte da moral aburguesada, exigência de ocupação, desprezo a qualquer coisa que remeta ao famigerado ócio. Ruan foi muito cumprimentado na escola, foi tido como herói no trágico evento do sábado passado, alunos lembravam do episódio, imaginando que guardariam o fato feito àqueles momentos inesquecíveis que fazem os adultos recordarem os tempos escolares. Andréia estava eufórica, teve a ousadia de ir à sala de Ruan para conversarem, tudo caminhava conforme seus planos. Amanda faltara, estava ainda constrangida, além do embaraço de demonstrar o rosto com hematoma, embora tenha relatado aos pais ter sido vitimada por um acidente, um pé de cadeira que havia acertado sua face. No seu íntimo estava o repúdio aquele pé, ou melhor, a pata do animal que acertara seu delicado rosto, mas que tivera o revide, graças a surpreendente atitude do até então apático Ruan. Lúcia naquela manhã estava muito atenta às lições, procurava remediar o último incidente, não pretendia ficar marcada na escola, concentrava-se em dar o melhor de si em cada aula. No final do dia letivo, Ruan se dirigiu à coordenação, a conversa tão aguardada, chegando um pouco antes, se deparou com Karina chorando, entrou sem perder um segundo sequer, a professora tentou se recompor, mas ele a abraçou, fazendo um leve cafuné. A educadora o afastou de forma delicada, evitou tocar no assunto que a fizera perder a compostura, ouviu o relato do garoto, que descrevia seus problemas estarem relacionados ao conhecimento tardio do falecimento de sua mãe. Aquele desabafo provocou um abalo em Karina, que expôs sofrer de um padecimento parecido, pois perdera o filho ainda bebê, vira-o morrer em seus braços, a cena sempre a perseguia, ainda assim era preciso seguir em frente, lutar contra tais fantasmas do passado que estão sempre prontos a assombrar nosso presente. Acresceu que a memória era uma terrível companheira nesse tipo de tragédia, os dois concordaram em um olhar que fez as palavras extinguirem. Ruan jamais imaginara tal desenlace, seu ardil tocou em um ponto sensível que os unia, parecia algo que remetia a um destino, mesmo descrente em relação a isso.
Andréia e Ruan estavam íntimos, trocavam confidências, caminhavam juntos de braços dados, já havia se espalhado pela instituição educacional que um namoro surgia. Andréia foi a casa de Ruan, a pedido do rapaz, conheceu seus familiares, foram para o quarto, não ocorreu como em sua casa, nenhuma recomendação sobre a porta do quarto manter-se aberta. Faz parte de uma sociedade machista dar certas liberdades aos garotos, as mulheres ainda são tidas como ordinárias, no sentido de submetidas aos ditames de uma masculinidade infame, o ato de poder engravidar é uma aflição para a família que é contemplada com um jovem rebento antes dos rituais casamenteiros. Andréia entendia este acordo matrimonial como coisificação feminina, onde a mulher era entregue por seu pai, o lado masculino que a tutelava, para ser deflorada e procriar sob os cuidados de um novo másculo, denominado marido. Lê-ra algo em um artigo acadêmico publicado num site de universidade, sobre tais particularidades em trocas de objetos e mulheres, do antropólogo Claude Lévi-Strauss, sendo que a mulher era muitas vezes associada a uma permuta mercantil, conforme seu entendimento acerca da leitura feita. Sabia que mesmo ocorrendo sexo entre aquelas quatro paredes, os pais de Ruan tomando conhecimento disso, a probabilidade mais óbvia seria vangloriarem o filho e pedir cuidados preventivos quanto à gravidez e doenças venéreas. No fundo sabia que Ruan não fazia parte desse perfil, estava feliz por ele não ser como tantos outros, mesmo se fosse, ali estaria entregue aos teus sentimentos, não o impediria de amá-la naquela alcova. Nunca tivera um contato sexual de penetração com outro homem, mas desejava que sua primeira vez fosse de forma especial, por mais romanesco que lhe parecesse, seu “príncipe encantado” já estava escolhido. Ruan disse ter uma confissão muito grave a fazer, o coração da jovem bateu em ritmo alucinante, imaginou que viria o pedido tão desejado, mas foi surpreendida, as palavras que ecoaram em seus ouvidos eram melhor nem serem ditas, ou antes, tivesse sido contemplada pela surdez momentânea. Ruan declarou seu amor por Karina, da forma mais inocente possível, era um relato que se faz a alguém muito próximo, guardara para sua amiga esse segredo que lhe consumia. Andréia reteve as lágrimas, embora tenha sentido uma que teimou em tornar sua vista esquerda embaçada, disse que recordara-se de um compromisso inadiável, saiu repentinamente, deixando o rapaz com ar de certa incompreensão.
Precisava chegar o mais breve possível em sua casa, foi até seu quarto, ligou o aparelho de som, aumentou o volume, deixou tocar a música “Alone” da banda Heart, mas era uma versão tocada pelo After Forever, a letra dizia:
“I hear the ticking of the clock
I'm lying here the room's pitch dark
I wonder where you are tonight
No answer on the telephone
And the night goes by so very slow
Oh I hope that it won't end though
Alone...”
Seu choro saía como se tivesse sido contido há anos, tentava chorar todas as lágrimas que conseguisse naquele momento, deseja secar-se por dentro, sentia-se assim, murcha, ressecada, seu ar havia sido furtado, tudo que dizia respeito a seu organismo era tragado por seu peito. Conhecera a força do coração, tantas vezes atribuíram a este órgão um sentido de máquina, agora sentia o mecanismo furioso trazendo pra si tudo que fazia mover pelo teu sentir, estraçalhando às avessas cada tecido outrora em harmonia. A dor não era física, talvez tivesse sido, mas era uma física diferenciada, nada que fizesse gritar, parecia que o eco era pra dentro, cada vez ecoado, fazia comprimir uma parte de si. Sua voz se tornou um nada, quando muito um leve gemido que escapava na agonia dos sentimentos, era esmagada sem piedade por emoções que se descontrolavam, sua maquiagem escorria borrando o rosto, dando um ar ainda mais melancólico a sua expressão facial. Ruan decidiu declarar-se, estava mantendo relações de cumplicidade com Karina, pelo menos em seu entendimento, devido ao tanto que compartilhavam, notou um afastamento de Andréia, que passou a evitá-lo. Nem atendia seus telefonemas ou pedidos para um encontro, algo ocorrera, estavam se afastando. Esperou uma manhã de sexta-feira, imaginou ser adequada para declarações, teria o final de semana para tentar restabelecer-se. Sentou-se diante de Karina, olhou no fundo de seus olhos, largou as palavras da forma mais natural que conseguira, disse estar apaixonado, que não mais se desvencilhava dos pensamentos que desejavam a companhia de sua “amada”. A professora, um pouco surpresa, perguntou acerca do bilhete, o rapaz confirmou ser de sua autoria, ficando feliz por saber que havia sido lido, mas logo sua expressão mudara. Karina disse que aquilo era uma tolice de adolescente, fez ar de indiferença, procurou encerrar o assunto.
O final de semana veio, com ele a desolação de Ruan, fora rejeitado, enclausurou-se em seu quarto por aqueles dias. No outro extremo da angústia, Andréia também passara um final de semana trancafiada, o apetite havia se extinguido em ambos os casos, malefício corriqueiro em dramas de apaixonados. Quem se mantivera tranquila foi Lúcia, suas conversas virtuais estavam a cada dia, mais envolventes, já haviam se visto na webcam. Soubera que Harry tinha trinta e dois anos, era um homem de expressão jovial, rosto liso sem barba, a voz era grave, ao mesmo tempo afável, conversavam sobre temas inimagináveis, soube que seu interlocutor fora casado, mais divorciara, era pai de dois filhos. Sua filha era de idade compatível à Lúcia, o que fazia a guria alegrar-se por saber que um homem vivido se interessava pela conversa de uma “pirralha” como ela, mantinha em sigilo as conversas, sabia que seus pais eram ciumentos, filha caçula, poderia causar o rompimento daquela nova amizade. Uma vez ao sair da escola, havia comentado a Andréia que iria encontrar-se com Roberta, já alertara a irmã sobre o incidente todo que levou à coordenação, pedindo discrição aos pais, pois fazia parte de seu desenvolvimento, Sua irmã consentiu, chegando em casa disse aos pais que a menina havia permanecido na escola para cumprir tarefas educacionais, que retornaria para buscá-la conforme haviam combinado. Lúcia também enganara Andréia, havia marcado um encontro com Harry em um local próximo à escola, foi bem pontual, estava ansiosa. Logo um carro se aproximou, era Harry, fez o convite para que a menina entrasse, apesar das recomendações tutelares, acabou aceitando a oferta, percebeu que o homem era um pouco diferente do que vira na internet, parecia mais gordo, o rosto mais envelhecido. Saíram de carro, Lúcia comentou que não poderia demorar.
Era um Corsa de cor vermelha com vidro fume, Lúcia reparava o carro inteiro, quando Harry estacionou, era um estacionamento que parecia abandonado, naquele instante sentiu que talvez não tomara a melhor decisão ao aceitar aquela carona. Harry se aproximou tentando beijá-la, ela o afastou dizendo que eram apenas amigos, que não deveria confundir as coisas. Haroldo soltou uma risada recatada e diabólica, disse que era um homem feito, seus relacionamentos não poderiam ser de colegiais, desejava algo mais, foi se aproximando feito um lobo pronto a devorar um tenro cordeiro. Lúcia tentou lutar, mas o homem era bem mais forte, logo estava beijando seu pescoço, exposto pelo uniforme escolar, suas mãos já percorriam as pernas, à procura do zíper da calça jeans da menina. Lúcia deu tapas, conseguiu uma mordida no ombro do sujeito que se tornou mais agressivo, agarrando a pequena pelos cabelos, arrancando inclusive um tufo pela força da puxada. Harry colocou a mão da menina em sua calça, no exato local dos órgãos dos meninos que tantas vezes vira em um ato público de urinar, mas o daquele homem asqueroso era diferente, estava rígido, era algo medonho a impressão que causava. Lúcia recordara-se das partidas de futebol entre meninas e meninos, conteve seu choro, surgiu em sua mente o ponto fraco que era temido pelos garotos, sem pestanejar agarrou os testículos do seu agressor e torceu com a força que possuía naquele momento. Haroldo gemeu terrivelmente, a menina pulou para o banco de trás, sendo agarrada pelas pernas, havia avistado desde que entrara no carro uma chave de roda, seu pai tinha uma parecida. Tentava quebrar o vidro batendo com aquele pesado objeto, ao mesmo tempo chutava Harry e buzinava com seus pés, as janelas travadas, assim como as travas das portas, era veículo elétrico, também gritava sem parar. Alguém que passava pelo local percebeu algo estranho, correu até o automóvel, era o vigia daquele pátio que estava em obras, sacou a arma e pediu que abandonassem o veículo. Harry em um movimento rápido destravou a porta, empurrou a menina em direção ao vigilante, saindo em disparada, com a porta do carona ainda aberta. O vigia, compreendendo o que se passara, disse que alertaria a polícia imediatamente, era seu dever, até mesmo pelo repúdio que tinha, ao que chamou de “pedófilos”, Lúcia insistiu que não fizesse, pediu que ligasse para sua irmã.
Andréia chegou rapidamente, pelo menos o mais breve possível, o trânsito possui suas restrições, ainda mais para quem depende do transporte coletivo. Chegando ao local se assustou com a expressão da irmã, que caiu chorando em seus braços, reforçaram o pedido de não contatar a polícia, o vigilante que se chamava Estevão, disse ter anotado a placa, entregando a anotação para Andréia, que agradeceu de forma veemente. Foram caladas até a parada do coletivo, Andréia dissera que ambas erraram, os pais realmente não deveriam tomar conhecimento do ocorrido, seria outro segredo que manteriam até a morte. Fez questão de descer na rodoviária, disse para a menina que iriam ao banheiro para que se lavassem, deveriam estar recompostas, não poderiam levantar suspeitas, chegando em casa gostaria de ouvir os pormenores da história. Chegando em casa, Cecília perguntou como havia sido o trabalho, Lúcia disse timidamente que bem, Andréia completou que foi mais cedo para conversar um pouco com Ruan, voltara com atraso por se entreter com o amigo. Subiram ao quarto de Andréia, o som ligado para abafar a conversa, Lúcia contou o drama vivido, desde as primeiras conversas virtuais, sendo aconselhada pela irmã a chorar baixo para não abusar da perspicácia de seus pais. Repreendeu a garota pelas atitudes estúpidas que havia tomado, alertou que poderia estar morta neste instante, depois se abraçaram e choraram juntas de alívio. Logo em seguida ligou para Ruan, comentou por alto o que ocorreu, o rapaz disse que confirmaria aos pais qualquer indagação a respeito, desligou logo em seguida o telefone, era um martírio ouvir a voz daquele rapaz.
Karina passou outro final de semana habitual, ou pelo menos imaginara-o assim, mas Ruan não lhe saía do pensamento, porque aquele olhar tinha causado tamanho desconcerto em sua pessoa?