Dias [Per]Feitos (Romance Fragmentado: Parte 2 - Capítulo 5)
Parte II
Capítulo V
Cecília pediu a sua filha Andréia que redobrasse os cuidados em relação a sua irmã Lúcia, estudavam na mesma escola e foram juntas caminhando pela rua, fazendo aquele trajeto rotineiro. Lúcia caminhava ainda com ideias acerca de seu atual drama, mesmo sua irmã já havia lhe relatado também ter passado pela menstruação, com menos ternura que sua mãe, dizendo que era uma desgraça ter esse inconveniente mensal. Quando entraram pelo portão, Andréia apenas conduziu a irmã até sua sala, retornando para o lado de fora da instituição, provando mais um cigarro, este de um maço novo que comprara na padaria ao se dirigir à escola. Pediu segredo a sua irmã pela compra dos cigarros, mentiu a idade para a atendente da padaria que não fez questão de exigir alguma prova de sua maior idade, lembrando a caçula dos assuntos velados que as mulheres carregam. Mais uma vez a sineta estridente e Andréia foi cabisbaixa para sua aula de Literatura. Lúcia adentrou a sala de aula com ares diferenciados, os colegas perceberam que algo havia ocorrido, até a professora notara, mas somente a pequena tinha noção do acontecido, sua transformação, deixara de ser menina. Olhava os de sua turma com certa superioridade, também sentia temor em ser descoberta, parecia não mais pertencer aquele cenário, se alguém descobrisse seu segredo, poderia ser expulsa. No mesmo instante outro pensamento surgiu, pois deveria haver outra, ou outras meninas na mesma situação, meninas-mulheres disfarçadas de meninas-crianças, mas como avaliar sua real posição naquele ambiente? Passou a reparar nos trejeitos das outras alunas, os meninos perderam a graça, não desenvolveram tal processo de transformação. De repente, notou que Jaqueline a observava com uma interrogação na fronte, o que fez baixar os olhos para desviar-se desse olhar de inquirição. A sala nesse instante parecia encolher, comprimindo a menina, sufocando pela diminuição de ar, uma claustrofobia que sua mente acabara de criar, sentiu-se oprimida.
Andréia soube que amigos fariam uma festa no final de semana, bastavam duas medidas, saber se Ruan estaria e convencer os pais de participar. Não se dizia outra coisa, as aulas passaram despercebidas, o que estava em voga eram os preparativos para o evento, tudo seria providenciado de forma repentina, nada mais fácil para driblar a vigilância paterna. Quanto mais prolongada a estratégia para execução de um plano, maior a probabilidade de não dar certo, essa era a lógica dos alunos, pois os compromissos poderiam surgir, como as temidas avaliações, além da desconfiança dos tutores, agir de surpresa era a melhor tática. Amanda estava empolgadíssima, alguns garotos do seu interesse já haviam confirmado a presença, passou a incentivar Andréia de forma insistente, até se empenhou em auxiliar num ardil para assegurar a presença de Ruan. As turmas do ensino médio em peso confirmaram, alguns do ensino fundamental foram chamados para ajudar a compor um público aceitável, rifaram os considerados pirralhos demais, os mais populares e que eram experts em arranjos desse tipo foram convocados e não hesitaram em participar. O alvoroço tomou conta dos corredores, mas tudo em sigilo que não denunciasse aos educadores, ninguém deseja ter seus planos comprometidos, um grupo responsável pela parte de tesouraria já arrecadara uma quantia que pudesse providenciar um suprimento antecipadamente. O local era a casa do Elias, tinha um ótimo terreno para abrigar os convidados, seus pais não se incomodavam e respeitavam o lazer do filho. Seria feito um tradicional churrasco escolar de confraternização, pois tal nome que remete a certa indulgência favorece o acolhimento dos pais, além da supervisão de adultos durante o evento.
Ruan não recebeu com empolgação a notícia da festa, sua atenção estava totalmente voltada à Karina, que cada dia tomava-lhe os pensamentos de forma mais petulante, adentrando sua mente feito antiga moradora. Deixou um bilhete na mesa da educadora sem que pudessem perceber, chegou cedo na sala de aula, certificou-se de estar sozinho, prendeu o papel embaixo da mesa de forma que quando a professora sentasse, seus joelhos provavelmente tocariam aquela folha minuciosamente pregada. Neste pequeno papel havia se declarado apaixonado, mas de forma anônima, não tinha coragem de revelar seu nome, ainda mantinha-se recatado para isso. A professora sentou-se, fez a chamada, deu sua aula habitual, Ruan encantado e ao mesmo tempo ansioso pelo ato que tinha praticado, mas não obteve êxito. Quando Karina deixou a sala de aula, dirigiu-se à mesa sorrateiramente, usando a desculpa de interessar-se pelo assunto que os alunos tratavam, que era o churrasco na casa do Elias, sentou-se na cadeira de professor desleixadamente, a mão de forma sutil vasculhou a parte superior do móvel, descobriu o bilhete intacto. Retirou o pedaço de papel, amassou, carregou de punho fechado a prova de seu ato apaixonado, sentando no seu lugar totalmente frustrado, o olhar vago denunciava sua desesperança. Foi quando amigos disseram que precisaria confirmar presença no evento, tentou argumentar que não desejaria comparecer, mas acabou cedendo, imaginou que poderia desvencilhar-se de tal paixão em companhia de pessoas de sua faixa etária, num ambiente descontraído. As redes de relacionamento virtual ferviam, eram a forma mais segura dos alunos comentarem sobre o evento, seus pais costumavam de forma geral, serem resistentes a tais tecnologias, o que facilitava o sigilo de certos assuntos.
Karina, com sua rotina de dar aulas em várias escolas, tempo escasso devido a preparação de aulas, desdobramento cotidiano ao qual se sujeita um profissional da área de Educação, habituado a uma vida de muito trabalho e pouco reconhecimento. Tivera um dia estressante, colocara sua filha em uma creche, não tinha condições de arcar com despesas de babá, o marido também estava ocupado com o trabalho, não existia outra opção. Era triste saber que entregaria seu bebê, chamada Julia, a estranhos, que segundo noticiários relatavam constantemente, por qualquer motivo banal poderiam descontar nas indefesas criaturinhas, sujeitas à supervisão de responsáveis que não estavam muito interessados em responsabilidades. Chorou por dentro, ao deixar a filhinha na creche, mas era uma mulher que não estava mais habituada a lágrimas com facilidade, mesmo sabendo que a moralidade machista permite o choro do que alguns ainda insistem em chamar “sexo frágil”. O aprisionamento de suas lágrimas teve efeito diferenciado, pois pela lógica, o acúmulo de choro deveria provocar excesso de líquido, mas Karina sentia uma sede sem igual, parecia seca até a alma. Foi para mais uma aula de Filosofia sem muito ânimo, ainda assim deu o melhor de si, tinha comprometimento com seu ofício, sentara-se na mesa, sentiu algo roçando seus joelhos. Discretamente tateou por baixo da mesa, encontrou um papel, abriu discretamente, colocou entre as páginas do livro que lia, “Água Viva”, de Clarie Lispector, enquanto os alunos copiavam o que havia escrito no quadro, leu a declaração de amor, não se entusiasmou, passara já por situações parecidas. Ainda assim, teve o zelo de não magoar o possível galanteador, fez questão de colocar o bilhete no mesmo local, parecendo nem ter sido tocado, mantendo sua postura sem despertar qualquer suspeita.
Ruan caminhava no intervalo pelo corredor, parecia distraído ao ler “Jubiabá”, obra de Jorge Amado, mas seu interesse real era outro, estava à espreita, observando a sala dos professores, enquanto isso observava a movimentação na coordenação, onde alunos aguardavam carrancudos o momento de receberem punição, por atos que a escola considerava injuriosos. Lembrou-se do romance, pensou que poderia existir um Jubiabá em sua vida que o ajudasse na conquista de sua paixão, mas deteve-se, queria conseguir Karina por seu próprio mérito, não seriam forças ditas ocultas que teriam o crédito. Andréia vindo pelo corredor, parou diante de Ruan, foi tomada por uma coragem que não soube de onde surgiu, perguntou se ele iria ao evento do Elias. O rapaz confirmou, estava desejando encurtar a conversa para não perder de vista a sala dos professores, ainda foi interrogado pela obra que lia, pois Andréia desconhecia aquele romance, passando a se interessar a partir daquele instante. Ruan, ao ver que os professores começavam a retornar para as salas de aula, disse a Andréia que precisava ir, mas que poderiam combinar de irem juntos ao evento, o que fez a jovem gritar por dentro, pois contivera a alegria que inundava-lhe o peito para não parecer tão evidente o sentimento. Karina saiu apressada para retomar seus trabalhos, quando foi detida por Ruan, que disse estar com problemas em sua disciplina, precisando de reforço. O que fez a professora estranhar, o jovem era seu aluno mais aplicado, das duas uma, ou estava com problemas pessoais, ela pensou, ou este é o galanteador anônimo, pois sua malícia feminina não descartara a possibilidade de dissimulação juvenil. Ficou acertado que conversariam no final da aula, na coordenação mesmo, justo onde Ruan nunca tinha pisado por não ter cometido alguma falta que rendesse o acolhimento em tal recinto. A professora ficara em sala de aula, após dar tarefas aos alunos, corrigindo as últimas provas, pelo tempo escasso em lidar com todas as atribulações que o ofício exigia, percebendo a nota baixíssima que Ruan havia tirado, compreendendo o motivo da conversa solicitada pelo rapaz. Embora não desconfiasse que o aluno tivera a ideia de ir mal na prova com intuito de corroborar seu argumento para um encontro depois da aula, era perspicaz o suficiente para não deixar suspeitas sobre suas verdadeiras intenções, não subestimava a inteligência alheia, ainda mais de tão admirada criatura, que era sua paixão e professora.
No intervalo, Jaqueline interrogou Lúcia no banheiro, sobre o motivo da mudança súbita da amiga, dizendo que notara desde cedo que algo ocorrera, não aguentando mais de curiosidade. Lúcia, intimidada pela indagação seca feita, também respondeu de forma peremptória, afirmando que tornara-se mulher, estava agora sofrendo os encargos que o pecado original lhe infligira. Algumas outras meninas que ouviram o comentário vieram tomar conhecimento do que se tratava, formou-se um grupinho, ouvindo atentamente o relato da menina-mulher, que tinha se adiantado em relação as outras, nem Jaqueline havia passado por isso. Foi quando Roberta, uma daquelas ninfetas que na mais tenra idade assumem seu posto de Lolita, fazendo cair o queixo de um Nabokov, disse que esclareceria o assunto, precisariam encontrar-se no próximo tempo, em uma sala que estava desocupada, no final do corredor, o que fez com que todas do grupo consentissem, prevendo algo de mágico naquele evento. As meninas, não perdendo um segundo sequer, foram com passos ligeiros até a abandonada sala, entraram, sentaram no chão em círculo, Lúcia começou seu relato, Roberta antecipou comentando também sobre sua menstruação, ainda acresceu que a sua foi mais penosa por sofrer com o que chamou de “malditas cólicas”. Explicou conforme havia aprendido em leituras e relatos de cientistas experientes, que tudo aquilo não passava de um processo orgânico, coisa natural no ser humano, não sendo privilégio nosso, pois outros mamíferos passavam por semelhante incômodo. Lúcia interrompeu para expor a questão do pecado original, disse que não sabia sobre os animais também terem sido punidos, pensara que apenas Adão e Eva e seus descendentes tivessem sido condenados. Roberta não aguentou, deu sua gargalhada mais cínica, completando que as meninas deveriam deixar esses contos de “menininha pura” para as “fedelhas”, argumentando que tal questão era exposta pelos pais para manterem o controle sobre suas crias, a menina quando sangrava demonstrava estar desvencilhando deles, pronta para o mundo. As palavras “prontas para o mundo” fizeram o grupo calar-se por um instante, era como se a partir daquele momento, conforme uma vez a mãe de Jussara havia comentado, tivessem sido lançadas. Pois essa senhora de filosofia popular, dizia que “os filhos são como flechas, seus destinos não serão outro que não o de serem lançados ao mundo”.
Lúcia ainda não contente, teve a audácia de expor o episódio visto no quarto dos pais, o que fez Roberta soltar outra gargalhada, só que essa mais contida, tinha receio de que supervisores a ouvissem pelo corredor. Expôs o sexo de forma bem objetiva, comentando inclusive já ter soltado gemidos parecidos, mas não eram de dor, era gozo, o que fez seus olhos brilharem, ainda expôs com seu celular, um pequeno vídeo que havia baixado na internet, as meninas sentiram nojo. Roberta comentou que no início existia mesmo certo repúdio, mas o que era desagradável aos olhos, era êxtase em outros sentidos, fazendo habituar-se ao espetáculo que outrora parecia-lhes grotesco. Ainda foi além, por perceber a falta de informação das outras meninas, temendo que acabassem cometendo equívocos que ela mesmo havia experienciado, sabia que não poderia agir sobre as escolhas, mas contribuía de alguma forma para algum grau de conscientização. Expôs o tema da gravidez, aborto, métodos contraceptivos, dando ênfase na necessidade em cuidar-se, menos pela questão de gravidez e mais pela infecto-contagiosa, causando certo pânico nas atentas ouvintes com apresentação de vídeos que exibiam efeitos de pessoas infectadas com algumas doenças. Lúcia estava admirada, Roberta daria uma ótima professora, conseguia lidar de forma tão didática com aquela quantidade de informações, alcançava a linguagem exata de transmissão, tirando a gargalhada exagerada. A porta abriu subitamente, eram funcionários que procuravam as meninas com certa aflição, foram logo repreendidas e encaminhadas à coordenação. Lúcia pensava no quanto sua vida havia se transformado, num momento era uma menina feliz, sem malícia, agora tornara-se mulher. Ouviu e viu fatos chocantes na tela de um celular, participou de uma conversa de adultos, apesar de não serem, pois a gravidade do assunto não passou despercebida, completando o ciclo, estava sendo levada à coordenadora, provavelmente seus pais seriam alertados. Sentaram e aguardaram, logo foram conduzidas a presença da coordenadora geral, que expôs a situação como falta grave, logo apontando Roberta que assumiu a responsabilidade, embora todas tenham ficado ao lado da nova amiga, o que pareceu aos olhos da supervisora, algo mais sórdido, por ter sido uma trama feita em grupo.
Ruan aguardava após o término da última aula, sentado no banco em frente a coordenação, fitava o teto com ar de preocupação, o que fez com que Andréia, ao passar pelo corredor, se detivesse. Perguntando ao rapaz se estava bem, precisava de algo, embora o jovem tenha dito que estava apenas resolvendo alguns assuntos triviais. Resposta que não satisfez a percepção de Andréia, que algumas vezes estivera naquela situação, de frente àquela sala, sabendo que nunca ao entrar naquele recinto, teria agradáveis momentos. Karina chegou, convidou Ruan para entrar, os dois sentados, frente a frente, o coração do rapaz quase revelou suas intenções ocultas, ainda assim, manteve-se firme. Apresentada sua prova, perguntado sobre o motivo de tais atos que não condiziam com a postura do estudante, Ruan alegava problemas familiares, não revelando o teor por deixar transparecer algo de melindroso no tema exposto. Em alguns momentos chegou a lacrimejar os olhos, isso impressionou Karina, embora suas lágrimas tenham sido de emoção, ao estar diante de sua paixão, tão próximos, aquele ambiente que privava o mundo da presença daqueles dois seres que ali se tornavam um só momento. Combinaram novos encontros e traçaram uma meta de superação para o problema constatado, se despediram, o jovem ganhou um tímido cafuné, algo que lhe pareceu um prêmio, por tudo aquilo que havia passado e se predisposto em nome dos teus mais sinceros sentimentos. Andréia, caminhando de mãos dadas com Lúcia, não tirava da cabeça a imagem de Ruan, afinal de contas eles tinham outro ponto em comum, que era ir contra as normas do sistema. Enquanto Lúcia rezava para que ninguém tomasse conhecimento de sua ida à coordenação, mesmo com a veemente negativa de Roberta acerca da religião.