Dias [Per]Feitos (Romance Fragmentado: Parte 1 - Capítulo 1)
Dias [Per]Feitos
Parte I
Capítulo I
Era uma tarde ensolarada, daquelas de ar seco devido à baixa umidade, onde torna-se ofegante por muito pouco, a sensação de cansaço invade o peito, respira-se com dificuldade degustando um sabor arenoso que invade a garganta. Crianças aproveitando os últimos dias das férias escolares, tomando as ruas com brincadeiras que não necessitam da tutela educacional, ao mesmo tempo seguem um rigorismo que muitas vezes ultrapassa o da metodologia, a seriedade dos jogos infantis que cria até certa atmosfera austera na gurizada ao traçar suas táticas de brincar. Garotos brincavam de futebol de rua, chutavam a bola já castigada, com seus pés descalços e empoeirados, uma corrida aqui e outra ali provocava uma leve brisa naquela paisagem esquecida pelo vento. Ignoravam as precauções contra uma possível desidratação, valia apenas o jogo por si, saber o momento de quem entra ou aguarda para jogar, acertar o gol entre aquelas traves improvisadas com chinelos ou qualquer pedregulho que se encontra pelo caminho. Alguns revezam brincadeiras variadas, pique-pega, pique-bandeira ou qualquer outros dos tantos piques que rouba-lhes o ar reprimido naquela tarde abafada, um pequeno grupo optou pelo pique-esconde. O limite estabelecido para a brincadeira era bem restrito, o que facilitava ao desvelador identificar os inventivos escondidos.
Lúcia corria feliz com a ansiedade em poder ser descoberta a qualquer momento, escolhera um muro como asilo, todo chapiscado, coberto de ramas que desciam dando ainda mais aparência de abandonado, já que servia de construção desabitada. Sendo uma penúria aos corretores de imóveis pelo desleixo que a propriedade apresentava, mas um paraíso para as estratégias de crianças nas brincadeiras cotidianas, além de abrigo a quem desejava práticas que necessitam segredo frente aos olhares da sociedade. Lú era como os amiguinhos a chamavam, seu vestidinho roto era reservado para a diversão, sua marca registrada entre as menininhas da rua, ainda provocava suspiros em pequenos don juans que a cortejavam. Escondida sob a proteção da murada, atenta a cada ruído, por menor que fosse, até que escuta passos, era de César, chamado Cecé, que fora proclamado procurador na brincadeira. Adentrou o terreno abandonado, mas Lú estava agachada bem ao fundo, nem percebera sua presença, saiu em disparada procurando outros.
Passado o susto, Lúcia começou a rir por ter conseguido ludibriar o amigo, achou que iria urinar-se de tanto gargalhar, levou as mãos entre as pernas, como tentativa de conter qualquer urina, sentiu-se úmida, já imaginou a catástrofe, mas não seria a primeira vez que ocorrera. Mas ao se levantar e dirigir-se à luz, seus dedinhos gordos e delicados, estavam sujos de vermelho vivo. Pensou que poderia ter se machucado, mas percebeu logo que escorria pelas pernas, o pânico tomou-a num instante, era sangue que fluía feito urina, um ferimento grave interno. Correu em prantos para casa, passando por Cecé que a identificou, foi logo dar três tapas no poste da esquina e dizer que a havia encontrado, garantindo seu êxito na brincadeira. Lú nem se importara mais com nada disso, deu uma carreira nunca vista, entrou em sua casa de supetão, nem se deu ao trabalho de fechar a porta de entrada, sua mãe que vira tal cena, espantara-se, subindo em seguida no encalço da pequena.
A casa humilde possuía a regalia de privilegiar a filha com uma suíte, o que fez com que Lúcia se trancasse no banheiro, chorava sentada próxima ao lavatório, as lágrimas pareciam contrastar com o matiz vermelho do sangue, agora com uma coloração fosca, camadas secas que grudavam nos pelos das coxas, era uma sensação de medo junto com nojo, desolada frente o desastre que se expressava de forma tão súbita. Havia escutado pessoas comentando sobre alguma doença que causava sangramento interno, poderia ser algo próximo a isso, o mal era tão grande que não foi contido, sendo expulso por entre as pernas, justo naquele local tão recomendada a não tocar, que havia se acostumado ao dogma de pudor para meninas recatadas. Cecília batia na porta e dizia:
- Filhinha! O que houve? Mamãe está aqui, fale comigo.
Um silêncio angustiante se fazia presente, o que martirizava muito a mãe, que se desesperava, não por exagero sentimental, mas por representar bem o seu papel de mãe, entregando-se às emoções, não se detendo frente a possibilidade de algum dano a sua adorável filha. Chegou o ouvido próximo a porta, sons podiam ser captados, pequenos soluços tentando ser contidos, não precisaria muita perícia auditiva para constatar que se tratava de um choro sentido. Desesperada, começou socar a porta, quando um clique simples fez o trinco deslizar. Entrando no banheiro viu a filha caída, feito uma pessoa largada na sarjeta, o sangue entre as pernas denunciava o motivo de alarde. Disse para a filha que sabia o que se passara, precisavam conversar para que tudo pudesse ser esclarecido, mas antes pediu a filha que se lavasse. Lúcia entrou no pequeno box de roupa e tudo, sua mãe sentada na tampa da privada, ambas acostumadas em presenciar a nudez uma da outra. A roupa foi entregue à mãe em uma abertura sutil da porta, o braço logo se recolheu para dentro daquele ambiente quadricular que começava esfumaçar pelo aquecimento que a ducha provocava. A garota lavara-se com determinação, diversas vezes repetindo o ritual de banho, como se desejasse limpar-se inclusive por dentro, parecia ter sujado até sua alma. Enquanto o banho prosseguia, a mãe aproveitou e levou a roupa ensanguentada, deixando-a dentro de um balde para que ficasse de molho. Já providenciara a toalha, deixando pendurada na porta do box.
Lúcia, ainda com os olhos avermelhados pelo choro, saiu enrolada na toalha, sentando-se na cama, sua mãe aguardava com um ar de seriedade ao mesmo tempo de emoção. Cecília escovava os cabelos longos da filha já pensando em como proceder na exposição de tema tão delicado, já que ouvira tantas vezes psicólogos aconselhando a respeito, mas sabia que não era tão simples, ainda mais para ela, mulher criada com tanto recato, família de tradição muda, onde tais assuntos eram velados, não apenas pelo constrangimento de mencionar, mas por correr o risco até de receber algum castigo por tamanha afronta em expor tema tão melindroso. Virou a pequenina de frente, olhando em seus olhos, tentando manter firme o olhar, embora o constrangimento a fizesse desviar daqueles olhinhos marejados, além de seu pudor recatado que fazia sua visão ir direto para baixo, como forma de submissão a um tema que a religião fez questão de ressaltar. Suspirou fundo, iniciou dizendo que a menina não precisava envergonhar-se, era algo que ocorria com todas as mulheres, desde a primeira, Eva é claro, conforme já haviam lido na Gênese.
- Onde mamãe?
- Na Bíblia minha filha! Lembra de como o padre nos contava sobre a criação? As maravilhas que nosso Deus permitiu conhecer.
- Sim, eu me recordo! Mas o padre Bernardo jamais disse que Eva sangrava entre as pernas, de episódio de sangue só me recordo do crime de um tal Caim. Eu também cometi um crime por sangrar assim?
- Não Lúcia! Você é pura de crimes, mas na criação, quando só existia um homem e uma mulher, estes pecaram, e nós temos a herança desse pecado original, o fato das mulheres sangrarem vem disso.
- Mas se Deus é tão bom, porque me faz sofrer? Eu nunca deixei de rezar, uma vez apenas que esqueci, mas foi questão de minutos para me recordar, aquele dia até prolonguei as orações para reparar meu breve esquecimento.
- Sim, minha filha! Mas isso não podemos compreender, faz parte dos desígnios religiosos, o que sabemos é que esse é nosso legado. Não adianta se revoltar contra, não poderemos modificar, mas devemos compreender e nos submeter.
- Nosso pecado então foi maior, já que os meninos não sangram! Pelo menos agora entendo o motivo de não poder tocar essa região, enquanto via os meninos fazerem de forma desavergonhada, urinando feito cães.
- Que palavreado Lúcia! Os meninos também não devem fazer tal coisa em público. Isso também marca uma dádiva minha filha, não simboliza apenas um drama, pois quando a menina sangra ela passa a ser mulher, parecido com os meninos quando começam a ter barba.
- Mas conheço adultos sem barba, eles não se tornaram homens?
- Tornaram-se sim, querida! Podem não ter barba mais modificou algo neles, seja a voz, a forma de proceder, enfim, ocorre alguma mudança. – Cecília ria de forma embaraçada, pois a filha colocara-a em uma popularmente conhecida “saia justa”.
- Então é preferível ser homem mamãe, sangrar é muito feio.
- Mas é graças a isso que nós podemos ter algo que nenhum homem teve até hoje, a capacidade de gerar um bebê.
- Então agora posso ter um bebê? – Os olhos de Lúcia brilharam com uma intensidade preocupante.
- Não querida, é cedo pra isso, mas seu corpo já está demonstrando preparar-se para o momento adequado. Agora é minha pequena filha mulher.
Cecília foi até seu quarto, voltou com um pacote, era absorvente, o que a menina vira em muitas propagandas, jamais sabendo como proceder diante de tal novidade. A mãe com toda paciência demonstrou como utilizar, explicando o objetivo de reter o sangue, que o sangramento era consequência do corpo ainda não estar formando um bebê, que agora deveria ter ainda mais cuidado naquela região, não podendo utilizar certas roupas nas épocas que a chamada menstruação ocorre. O que fez a menina lembrar-se de comentários sobre esse nome estranhíssimo, agora sabia que representava também um momento esquisito para ela. A mãe afirmou com gravidade a necessidade de evitar certas intimidades com garotos, que poderia acarretar em um mal tão grave quanto o pecado original cometido, mas na cabeça da menina dera-se de forma simples a explicação acerca do tema, pois se gerasse um filho sem estar preparada seu bebê morreria, pois recordara-se de alguém comentar sobre algo parecido, chamaram de aborto. Mãe e filha unidas pela natureza feminina, com seus mistérios sendo desvelados por um empirismo que dispensa tempos certos para se fazerem conhecer.
Lúcia aguardou a saída da mãe, fazendo ar de conformação após o ocorrido que a desconcertara, colocando o dito absorvente conforme as instruções maternas, embora este fosse de um tamanho que sobrava em sua calcinha parecendo ainda mais grotesco. Ainda buscando algum resquício sanguinolento que pudesse ter restado ou de novo ter-se formado entre as pernas. Deitou-se na cama, começou a fitar o teto deixando o pensamento vagar, imaginando ter perdido toda aquela candura que fizera todos a estimarem, a menininha tinha se corrompido, rompido literalmente, uma fissura que expunha dentro de si, liquefazendo sua natureza infantil, expondo-a numa realidade mulheril. Seu castelo de ilusões acabava de desabar, as formas da princesa em busca do príncipe encantado dera lugar a mulher que sangra, parecendo uma criatura de contos para assombrar pequenos. Era final de tarde, o crepúsculo fazia os raios solares ainda resistentes darem ao quarto uma coloração avermelhada, que ironia, a realidade sangrava com ela, uma pequenina Sekhmet, mas sem a fúria da leoa que seu tio havia lhe contado no mito, imaginou até as lágrimas dos filmes de vampiro, que também são feitas de sangue, pois o dela também jorrava feito monstruosidade, só que de forma ainda mais terrível, velada, sem a lucidez da face para amenizar tal efeito, escorrendo entre suas coxas feito uma urina não contida, talvez até contaminasse a terra se as gotas caíssem e nada mais pudesse germinar em tal terreno esterilizado por sua tragédia.
Pegou seu diário, começando a descrever aquele momento pavoroso, talvez o desabafo mudo pudesse ajudá-la com tal angústia, também serviria de legado a tantas outras mulheres. Que viriam sofrer pelo antiquíssimo pecado original, não deixaria sua filha passar por isso, daria seu testemunho prevenindo sobre o inevitável desenlace, o momento em que a lépida borboleta faz o ciclo inverso, rompendo sua inocência, tornando-se uma lagarta que como a lesma deixa seu rastro viscoso. As letras ganhavam contornos nervosos, uma grafia tortuosa, mas sua mãe havia lhe dito que até Deus escreve torto, imagina ela que estava nervosa. Roera as unhas com sofreguidão, escorria sangue nos cantos de dois dedos, dando ainda mais realidade pelas gotículas que passaram a enfeitar as páginas de seu diário de lamentações. Aproveitou para dar uma espiada no que havia registrado desde o dia que recebera de presente o tal caderninho de anotações pessoais. Fora com nove anos de idade, nem poderia imaginar a utilidade que teria nos próximos anos, um companheiro fiel e o melhor de tudo, não ousava opinar, guardava tudo com uma discrição invejável, não era dado a fofocas, ainda sendo seguro por portar seu pequeno mais eficiente cadeado.
Lia rememorando episódios cômicos, quando confundira os presentes na árvore de natal, deparando-se com a ousadia do namorado de uma prima, que lhe presenteara com lingerie. Não era para ser revelado em público, seria um agrado velado, mas ela, menina inocente, abriu e ainda deu risadas sobre o objeto até então desconhecido por sua pessoa, causando constrangimento nos familiares, o rapaz então, quase se jogou da sacada do apartamento. Também dava gargalhadas quando se recordava do primeiro beijo, sensação gostosa ao mesmo tempo estranha, a saliva alheia parecia nojenta, a boca ficou ensebada, não sabia qual posição era mais propícia para o encaixe, os dois jovens beijoqueiros se desdobravam para usufruir daquele momento tão desejado, ao mesmo tempo repletos da insegurança dos neófitos. Emocionara-se sobre as palavras sofridas que registravam o dia do falecimento de sua avó querida. Aquela pessoa de fala mansa sempre pronta a recebê-la com guloseimas, presentes e o melhor de tudo, muito carinho, sabia a palavra certa para acalmá-la, tornando-a sempre especial com um ou dois elogios, alguns momentos bastava um olhar terno para que se rendesse. Dias traumáticos não foram esquecidos, como a queda nas escadas do prédio onde era realizada a festa do casamento de uma das primas, resultando uma luxação no braço esquerdo, apesar da dor imensa, resistira sem deixar que as lágrimas transbordassem.
Um episódio detivera diversas páginas do hermético diário, algo que desconcertou Lúcia de uma forma que precisou desanuviar suas idéias através da escrita. Era uma madrugada daquelas que o sono parece fugir de nós, onde sentimos ter desagradado Morpheus, sendo punidos com insônia perturbadora. Daquelas que nos fazem fitar a penumbra, rolar para um lado e outro, deixar a imaginação fluir, tentar fechar os olhos de forma autoritária, sentir calor, descobrir-se, sentir frio, cobrir-se. Nada sendo suficiente para agradar, o corpo já percebendo o demasiado tempo que estivera deitado, desejando movimento além do colchão, por mais macio que seja. Levantara-se para beber um copo de água, ouvira ruídos no quarto dos pais, talvez sofressem do mesmo mal, a porta estava entreaberta, resolvera espiar pela fresta, sua mãe estava sentada nua, seu pai também, talvez o calor tivesse feito eles tirarem as roupas, se beijavam, até que os beijos começaram a ter ousadia em locais que nunca imaginara, os adultos devem se dar ao luxo de beijar partes pudendas. Era algo estranho ao mesmo tempo belo de se ver, até que ocorreu algo horrível, seu pai estava entre as pernas de sua tão querida mamãe, introduziu nela o seu membro, algo nojento fez arrepiar o dorso da menina. Era aquela mesma coisa que vira uma vez Cecé utilizando para fazer xixi, que os meninos mostravam de forma orgulhosa, enquanto as meninas procuravam esconder, embora não tivessem algo pra fora que pudesse ser mostrado. Sua mãe gemia, aquilo devia machucá-la, ainda assim ela permitia, e seu pai impiedoso continuava, chegava a bufar, suavam. Não podia continuar assistindo, correu para seu quarto, a boca mais seca ainda, não tivera coragem de ir até a cozinha pegar água, achou que agora mesmo teria motivo para não conseguir dormir. Chorou baixinho, soluçando, adormeceu com a face e o pijama molhados sem se dar conta, o sofrimento é remédio eficaz nas travessuras do sono, causando inveja em renomados ansiolíticos.