Recomeço

Despediu-se do amante e fechou a porta; sentou-se no sofá e pôs-se a pensar, com os cotovelos nos joelhos e as mãos nas bochechas; fora tão repentina e inconseqüente, essa visita inesperada. Dois dias antes, num momento em que havia saído de dentro de si mesma, telefonou-lhe para confessar as saudades. Naquele mesmo dia, encontraram-se debaixo de chuva, e entregaram as novas vidas um ao outro; combinaram de se ver depressa, mas sob cautela, para não estragar. Porém, no dia seguinte, procurou esquecer o coração e tomou postura mais contida, segura. As palavras saíam-lhe automáticas, e optou por não saber dele, não queria lhe dar notícias, e tinha certo desinteresse em fazer contato, pois que a intimidade já lhes provara o veneno em outros tempos, e sabia que sempre deveria esquecê-lo tão logo dele se lembrasse, para evitar o sofrimento; não poderia incomodar-se no amor. Mas era tarde pois já se importara, e tinha ciência do fato; quisera dele saber tudo, desde os últimos anos em que não se viram sequer uma vez, até os últimos dias antes de se abraçarem após o telefonema. Dois dias após o primeiro encontro, veio o último. Marcaram na casa dela, antes de o sol seguir viagem para o oriente. Repentina e inconseqüente a paixão que se seguiu ao clic da fechadura; um abraço encalorado e sedento uniu os corpos e as mãos se perderam nas carnes; pouco conversaram enquanto dirigiam-se ao pequeno cômodo iluminado somente pela luz vermelha da velha lamparina. Poucas roupas ainda restavam, e não bastaram para serem removidas já na cama, não sem certo esforço, por estarem suadas. Estava quente. A mulher se deixara levar pela velha paixão, mas seu amante sabia que era só o instante. E pelo resto da noite permaneceram os dois, deitados, mãos dadas, como dois irmãos; não eram vulgares; ele amava-a. Ela não sabia o que dizer. Com uma alegria suspeita, divertiu-se e fez o possível para atenuar as dores do homem, porque o notara de bruços, encarcerado pela solidão de amar só. Pronta, levantou-se e saiu caçando calcinha e blusinha, o jeans azul-marinho e as meias de dormir que ficaram no sofá. Ele quedou-se na cama até que ela viesse lhe chamar, e não correram três minutos completos ela apareceu na porta dizendo que estava tarde e era então hora de deixarem-se. O homem levantou-se cheio de amargura, mas em silêncio; perdeu algum tempo procurando os sapatos e afivelando o cinto. Ela andava pela casa, fingindo abrir ou fechar cortinas, janelas, torneiras. Sentado, via-a de soslaio; aquela velha impaciência; mal se aguentava de querer trancar a porta e se ver novamente só. Abraçaram-se pela última vez, sem a volúpia partilhada no crepúsculo. Finalmente, despediu-se do amante e fechou a porta; sentou-se no sofá e pôs-se a pensar, com os cotovelos nos joelhos e as mãos nas bochechas; fora tão repentina e inconseqüente, essa visita inesperada. Ela lhe queria como que para um café, mas passaram mais tempo do que o certo. Já se iam dois dias desde o primeiro encontro. Sentira-o com fome carnívora, mas fome de quem ama. Ele partiu em lágrimas, mas ela não soube. Despiu-se e voltou a se enrolar nos lençóis desarrumados. Dormiu rápido, antes de saber que já tinha esquecido, tão logo dele se lembrara pela última vez.

Girardello Filho
Enviado por Girardello Filho em 21/01/2011
Reeditado em 28/01/2011
Código do texto: T2742303