O desafio

Saído do casebre no fundo do terreno que acompanha uma extensa entrada de garagem, cercada por terra úmida e grama alta, onde cresceram árvores de butiás frondosos e doces gabirobas, parto em direção ao lugar que encerra as águas que levo nas memórias felizes que me restam, próximo aos pequenos promontórios ao pé do morro do Cristo, na praia de Guaratuba. O passeio é lento, detalhoso, como exigem que sejam as recordações, e a mente vai trabalhando em pausas, rememorando quadros fotografados de nós, arquivados na lembrança; retratos de sorrisos que revelam um passado de amor intenso, de devoção mútua em corpo e espírito; o coração palpita em doses cada vez mais urgentes, à medida que atravesso as ruas, em cada esquina, até alcançar a beira da enseada. Súbito, um aperto atravessa-me a alma e os sentidos partem buscar noutro canto o amor que já não mais reconheço. Assim eu rumo ao promontório.

Lá em cima há um sol único e grande, satisfeito por arder forte, clareando os caminhos de todos. Parece que vai quedar irredutível, sem descanso, entre as estrelas que, com a manhã a pino, não disputam espaço com seus raios. A areia é seca, dura, mal se incrustam minhas pegadas. Tendo andado mais de hora, procuro descanso para a fadiga natural que trago em corpo e mente, e pra ela não se dá jeito algum, a menos que sumam os fantasmas de meus fracassos. Ouço as ondas explodirem musicalmente nas rochas, reverberando o som que me enleva e me deita com as costas no solo arenoso. Estico o pescoço feito avestruz e, caindo-me aos olhos os cabelos embolados pela maresia, observo nativos a passear e turistas ciscando lá e cá, ornando chapéus e viseiras, pendurados nos dedos os chinelos entrelaçados. A poucos metros de mim, três velhas riem muito e bebem, sob um guarda-sol inapropriadamente pequeno. Deito e cruzo os braços atrás da cabeça com areia; no ímpeto do ato, abro as cortinas dos olhos e, sem intenção, vejo lá em cima o sol largo e imponente. No mesmo instante, eles ardem, por serem apresentados assim, tão desatenciosos; de um fôlego me levanto, desfocado como óculos na chuva. É o sol me arrastando a testar seu brilho, cegando-me leve para atiçar a criança que espia pela fechadura. De olhos fechados, ergo-me, dobro os joelhos e me sento na areia. Pisco muitas vezes para recobrar a nitidez e me levanto para dar um mergulho. O caminho é limpo, sem aquelas pequenas e bem-feitas bolachas-do-mar que espetam as solas; apenas alguns gravetos, bitucas, coisas que as pessoas deixam. Então, o coração contrai e relaxa, acelerando a batida no peito que se abre para a experiência estimada; a água gelada invade o espírito, e deixará na pele o sal que me fará cozinhar sob o astro-rei. Sei que não só os braços e as mãos estarão queimados, como, também, os pés, e julgo que as pernas, apesar dos pêlos que camuflam qualquer cor ou ferida. O mar é delicioso como dormir com a pessoa amada.

Há uma ventania, meio intrusa, entremeando os corpos n’água e fazendo frio ao corpo arrepiado. Ela me anuncia um deleite passageiro; uma intensa corrente de ar que emana um perfume de nostalgia, e me traz correspondências de saudade; ventos do sul, que se aproximam duvidosos como um problema sem solução, ora serenos como leite quente, e com a força que derrubaria uma pequena casa mal suspensa na árvore. Uma conexão sinestésica surge entre mim e a natureza irmã, que reparte comigo as dores, dando-me o prazer de fazer parte de sua apresentação. Recordo as épocas de gordas diversões a sós, sem o que nos pudesse retirar o encanto; em que bastava existirmos um para o outro; líamos sobre yin e yang e cantávamos a plenos pulmões pelas estradinhas de terra, sob pouca ou nenhuma luminosidade, cercados por um horizonte vasto e desconhecido. O êxtase de agora me leva a encher os pulmões com um amarelo de alegria, e me sinto afoito e ao mesmo tempo feliz por sentir saudades, como uma criança que arranca sedenta o embrulho que encobre o presente.

É quando desaba em mim a realidade como a âncora que atraca o navio. Órfão de um amor que eu próprio matei. Como um bom jardineiro que assegura o brotar das sementes, uma vez dispostos os grãos na terra, restou-me o júbilo de ver brotarem os ramos, que logo tornaram em galhos vistosos, e enquanto se esperava logo uma árvore enorme, murchavam as flores e caíam os galhos, enfraqueciam as raízes, e fossem litros e litros de água para regar, as folhas iam e vinham como outono e primavera, até que se desprenderam as últimas folhas, verdes como a esperança, que também se esvaiu. Tal fora a nossa ruína, e o meu crime, que me encarcera como a um prisioneiro na solitária.

A vida, nesses tempos, se me afigura desinteressante, por sua solidão. Perco imediatamente a matiz de infante que coloria a minha face e concluo que meus devaneios de nostalgia eram medicamentos para meu consolo; uma mera recaída. Logo escorrem pelas águas os meus arrependimentos, alastrando-se feito petróleo que escapa do poço e invade a superfície do oceano. Como o pano que cai e desvela o palco, desenrola-se aos olhos a verdade que me traz do céu. E é em profunda tristeza que saio da água, inconsolável como uma noite sem estrelas.

De volta à areia, sentado com os joelhos dobrados, perco os olhos no horizonte longínquo, em que vejo barquinhos singrando velozes, cortando as ondas ainda prematuras. Parece inacreditável que o poder da natureza seja tão supremo, amável, para deixar em terra e mares tanto sem fim de beleza, ainda mais encantadora quando soçobram as ondas em ritmo acelerado, indo de encontro umas as outras, como amigos brindando à felicidade. Uma felicidade esquecida, enterrada com as pequenas flores a que dei vida, regando-as quando não havia chuva, e as aquecendo quando não havia sol. Agora, só há a escuridão, à que não se pode confiar nada senão a destruição.

Há uma culpa que é a cruz que pesa nas costas, cravada como uma tatuagem. As papilas sentem o gosto amargo do fracasso. É iminente o flagelo, e a punição não basta que seja só a solidão; há de existir algo com o que comprometer o corpo, causar escórias, para purificar o espírito encardido do homem mau; para arrancar do peito o coração preto e cair de joelhos dizendo que finalmente secou a água do poço e já não há mais vida que floresça o amor de minha querida e pequena rosa. O sol segue exorcizando-me o líquido do corpo, castigando-me com chicotadas de calor, tratando-me como a um escravo. Vai-se então, a lucidez, assim como a areia que escorre da mão fechada; é iminente o mal, bem como é urgente a coragem, até então sumida das minhas intenções; o peito se enche em fúria, os ventos esvoaçam fortes, como numa tempestade de areia, para sacramentarem a compaixão da natureza. Súbito, ergo-me; miro de soslaio a minha vítima; passo a sondá-la; estudo sua força com a sutileza e o afinco de um explorador. Sei que não suportarei muito tempo, mas abriu-se em mim uma adormecida, porém latente, enorme necessidade de reconquistar o orgulho perdido. Espiono o meu assassino, provocando-lhe a ira, com o desafio de fitá-lo cruel, nu. Espreita-me, ele, com uma visão panorâmica, prestes a disparar seus raios de fogo na íris. Sobe-me à garganta o lascivo veneno do ódio; visto a face com a máscara do demônio que me atormenta e me vampiriza, encontrando, em mim, terreno fértil para seu poder. Como a fome que aparece em horas certas, os retratos de meus infortúnios se revelam na superfície da retina como uma alucinação da qual não me posso livrar. E o sol me provara a fúria que tenho por mim mesmo, e foi por isso que minha garganta enrijeceu.

Em nome de todos os malditos arrependimentos, dos relacionamentos perdidos, dos amigos pelos caminhos, das mentiras que lépido aprendi a contar, dos projetos a que se uniram cupins em minhas gavetas; como forma de me libertar de todos os encostos, para largar de fugir de mim, para libertar todo o meu orgulho, em nome de todos os meus amores mortos, ergo o pescoço como a águia que mira o céu, e abro os olhos fixos na grande bola de fogo!

Se tenho uma intenção ao fazer isso é a de renascer a tudo que os olhos já viram, e por mais descabida que pareça, é a honra de externar a culpa interna que me satisfaz na empreitada. O calor vaporiza o suor que irrompe violento à pele, e a brasa viva no céu me tenta à libertação de meu destino. Em cinco segundos, baixo a fronte cansada com os olhos vendo tudo em branco, um clarão, como a luz no fim do túnel que espera os mortos. De olhos fechados, solto os membros e me deixo cair na areia, extasiado, suprimido, vencido, mas lutador. Encarados os medos, a dor de cabeça me diz que chega, já é hora de voltar à casa. Saio de alma lavada, um pouco cego, é verdade, e contorno as mesmas ruas que por tantas vezes passei em companhia de minha querida e pequena rosa, debaixo da chuva noturna. Cruzo o portão do terreno e invado a casa que já não me serve mais; se estou só, não me abraça, a casa, com os braços queridos. Vou embora da praia, vou embora de casa, e vou deixar a flor querida que não mais vestirá com doçura os ares de minha vida.

Maior que o desafio de fitar o sol e perder a consciência fora o de compreender que, de fato, as flores não crescem sem que delas se cuide, com o zelo e o amor que só um jardineiro possui. Deixar minha pequena e amada rosa morrer, sinto que fora minha responsabilidade, por mais que repartíssemos também os insucessos. O vil sol tocou-me o íntimo ao urgir como querido amigo, pronto para satisfazer-me a cólera; o presente adquirido fora ao mesmo tempo cruel e revelador, pois, se me levou a nitidez dos olhos, me resgatou de profundos desertos de areia movediça que me afundavam mais e mais. Mas não lhe quero mal, por me ter feito parte de seu cárcere. Digo, ainda, que colheria a mesma rosa, toda vez que essa florescesse novamente.

Quanto à ela, a rosa, só ela sabe a quem levar seu vermelho vibrante, seus espinhos malditos e seu perfume de mulher.

Girardello Filho
Enviado por Girardello Filho em 19/12/2010
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